Nas últimas semanas, o imbróglio jurídico envolvendo o Campeonato Brasileiro de 2013 tem tomado boa parte da cobertura esportiva no Brasil. Independentemente daqueles que advogam em favor de Portuguesa ou Fluminense, é recorrente vir à tona frases como: “Isto só acontece no Brasil...”. Entretanto, uma averiguação aprofundada da história faz com que tais afirmações precipitadas sejam dissipadas. No âmbito da justiça desportiva, polêmicas decisões não se resumem as fronteiras do nosso país, e já ocorreram em diversos campeonatos, inclusive no mais importante torneio interclubes europeu.

A segunda fase da Copa dos Campeões da Europa da temporada 1971-1972 possuía entre seus competidores uma série de equipes tradicionais, entre as quais: Internazionale, Benfica, Arsenal, Ajax, Celtic e Olympique de Marseille. Como invariavelmente ocorre em competições futebolísticas, uma equipe surgia com o potencial de ser a surpresa do torneio devido ao futebol técnico e ofensivo que praticava, além de ter sido o campeão alemão da temporada anterior. Esta equipe era o Borussia Mönchengladbach.

Técnico Hennes Weisweiler e jogadores do Gladbach campeões da temporada 1970-1971 da Bundesliga (Foto: Imago Sportfotodienst)

Com um elenco talentoso composto por jogadores como Berti Vogts, Herbert Wimmer, Günter Netzer, Ulrik le Fevre e Jupp Heynckes, o Gladbach não teve dificuldade em passar pelos irlandeses do Cork Hibernians FC pela primeira fase da competição (7 a 1 no agregado). No entanto, a fase seguinte apresentava um adversário não só mais difícil, mas também experiente e com dois títulos europeus conquistados na década de 1960: a Inter de Milão.

Elenco da Inter de Milão da temporada 1970-1971 (Foto: Acervo particular/Artyom Shchemelev)

É importante salientar que o confronto entre Gladbach e Inter foi recebido com grande expectativa, pois a rivalidade entre Alemanha e Itália havia se acirrado desde a grande semifinal disputada na Copa do Mundo de 1970. Um dos maiores jogos de todas as Copas (para muitos o maior) terminou com a vitória dos italianos por 4 a 3 após a prorrogação. Por isso, a disputa entre Gladbach e Inter era vista como uma possível revanche para os alemães.

Deixando de lado a rivalidade fomentada entre as seleções, os dois times eram opostos ao extremo. A Inter já era um time consagrado e com torcida expressiva, além de possuir numerosos títulos nacionais e internacionais. Embora tivesse jogadores ótimos tecnicamente (destacam-se o meio de campo Sandro Mazzola, o artilheiro Roberto Boninsegna e o atacante brasileiro Jair da Costa), o time italiano se caracterizava pelo famoso catenaccio, com sólido e pragmático sistema defensivo. Já o Gladbach era até então um desconhecido do público europeu, com uma geração de jogadores que estava apenas iniciando uma década que seria vitoriosa para o clube e, do ponto de vista tático, privilegiava o ataque.

Diferença entre a diposição tática dos times (Imagem: Footballuser/Rafael Mateus)

Com esse contexto estabelecido, o jogo de ida foi marcado para o dia 20 de outubro de 1971, no Bökelbergstadion, antigo estádio do Borussia Mönchengladbach. A delegação nerazzurri ficou hospedada em Colônia, distante poucos quilômetros do local da partida. Ao chegar em Gladbach, os italianos viram não só o antagonismo que existia entre as equipes, mas também entre suas sedes. Vindos da cosmopolita e populosa Milão, da arquitetura e moda exuberantes, encontraram uma cidade tranquila, quase provincial, e com um estádio com arquibancadas de madeira que em nada se assemelhava ao imponente Estádio de San Siro. Em muitos nerazurri, a visão do campo de jogo consolidou o entendimento de que a vitória diante dos alemães seria protocolar e uma questão de tempo.

Bökelbergstadion, o antigo estádio do Borussia Mönchengladbach (Foto: Site Oficial/Borussia Mönchengladbach)

Em campo, assim que o jogo começou os jogadores da equipe italiana perceberam que o Gladbach era um grande time e que seria um enorme equívoco subestimá-los. Logo aos sete minutos, Heynckes com um drible deixa Giubertoni no chão, chuta na saída do goleiro Vieri e abre o placar para o time da casa. O gol fez tremer as simples arquibancadas de madeira que estavam lotadas no Bökelbergstadion. A Inter conseguiu equilibrar o jogo e Boninsegna empatou aos 19 minutos, contudo o catenaccio italiano se mostrava ineficaz ao ataque do Gladbach e le Fevre desempatou dois minutos depois. A pressão alemã prosseguia durante o primeiro tempo, até que aos 29 minutos aconteceu aquilo que entraria para a história desse confronto.

Goleiro Vieri em ação na tentativa de deter a pressão do ataque do Gladbach (Foto: Imago Sportfotodienst)

Boninsegna se preparava para cobrar um arremesso lateral, quando foi atingido na cabeça por um objeto vindo das arquibancadas. Rapidamente, o campo foi tomado pelas comissões técnicas e jogadores reservas dos dois clubes. Giovanni Invernizzi, técnico dos nerazzurri, exaltado exige do árbitro holandês Jef Dorpmans que a partida seja suspensa. Há algumas versões a respeito do que atingiu Boninsegna, se foi uma lata de refrigerante ou cerveja.

De concreto, apenas o fato do capitão da Inter Sandro Mazzola ter dado ao árbitro uma lata de Coca-Cola como sendo o objeto atirado das arquibancadas. Alguns relatos descrevem que durante a confusão, Mazzola viu dois torcedores italianos próximos do alambrado, no setor de onde houvera partido o objeto que atingiu Boninsegna. Um deles estava com uma lata de Coca-Cola, Mazzola foi em direção a eles, pegou a lata e entregou-a para o árbitro.

Atendimento a Boninsegna no gramado do Bökelbergstadion (Foto: Imago Sportfotodienst)

Momento em que Mazzola entrega ao árbitro Jef Dorpmans a latinha de Coca-Cola (Foto: Imago Sportfotodienst)

Com a suposta “prova do crime”, os italianos seguiam irredutíveis na decisão de suspender a partida. Revoltados com essa solicitação, os alemães desejavam que o jogo prosseguisse normalmente, e até mesmo duvidavam da gravidade da lesão de Boninsegna que permanecia no chão recebendo atendimento médico. Acusações veladas partiam dos alemães: “Italianos e suas cenas de costume”.

Dorpmans nem mesmo tinha visto o que aconteceu, e no ano de 2008 deu um importante relato para o site TORfabrik: “Eu mesmo não vi nada, aos meus olhos era uma lata vazia”. Além disso, Dorpmans, mesmo salientando não ser médico e não ter uma avaliação precisa, destacou que as condições de Boninsegna não aparentavam impedi-lo de permanecer na partida.

Aos poucos, o árbitro restabelece a calma e em conversa com o delegado da partida, o lendário inglês Matt Busby (treinador campeão europeu com o Manchester United), acaba por determinar que o jogo deveria prosseguir. Após sete minutos de suspensão, a partida reiniciou com a Inter sem Boninsegna que, com a lesão causada pela lata, foi substituído por Ghio. Ao que tudo indica a interrupção da partida acirrou ainda mais o ímpeto da equipe do Gladbach. Antes do intervalo, o time alemão marcou mais três vezes com le Fevre, Netzer e Heynckes. Dessa forma, as equipes foram para os vestiários com os alemães vencendo por incríveis 5 a 1.

Boninsegna sendo retirado de maca (Foto: Imago Sportfotodienst)

Os times voltaram para o segundo tempo e pouca coisa mudou. O Borussia Mönchengladbach atacava constantemente, e logo aos sete minutos da etapa complementar aconteceu o sexto gol. Após passe de Heynckes, Netzer com um belo chute no ângulo marcou seu segundo gol na partida. Com o resultado definido, o Gladbach diminuiu o ritmo, mas ainda houve tempo para mais um gol. Heynckes sofre pênalti de Corso e Sieloff converte o para os alemães. O incrível aconteceu, o desconhecido Borussia Mönchengladbach com uma atuação de gala goleou a temida bicampeã europeia Inter de Milão por impressionantes 7 a 1.

Após a humilhante derrota dentro do campo, os nerazzurri tinham a crença que, devido ao episódio da lata, conseguiriam reverter o revés diante do Gladbach no Tapetão. Tinham como entendimento o princípio da responsabilidade objetiva, no qual a equipe deveria responder pelo comportamento de seus torcedores. Dessa forma, e tendo como base regulamentos vigentes em torneios italianos, acreditavam que, devido ao objeto atirado ao gramado, o resultado da partida deveria ser revertido para 3 a 0 para os visitantes. Entretanto, para espanto dos dirigentes da Inter, tal interpretação não possuía amparo legal nos regulamentos da UEFA. Como revela o jornalista Marco Mensurati, após o jogo e ainda no hotel de Colônia, o dirigente Franco Manni argumentou em tom de preocupação para Peppino Brisco: "Advogado, veja aqui: na regulação da UEFA não fornece um caso como este... eu consultei dez vezes o volume, na versão francesa, nada! "

Ainda assim, Giuseppe Prisco, mais conhecido como Peppino Prisco, entrou em ação reinvidicando a vitória para o time italiano. Prisco, além de vice-presidente da Inter, era advogado, professor de História e vice-presidente do Fórum de Milão. Sob sua liderança, a Inter entrou com um recurso na Comissão Disciplinar da UEFA.

Durante o julgamento, a defesa do Gladbach procurou demonstrar que o culpado foi um torcedor italiano da Inter. Contudo, a polícia alemã que estava reticente no início, se viu forçada a revelar a identidade do suposto responsável: um holandês naturalizado alemão chamado Manfred Kirstein, claramente torcedor do Gladbach. Com essa declaração oficial, ainda que não houvesse provas incontestáveis contra Kirstein, Prisco defendeu sua tese numa desgastante batalha legal que durou horas.

Momento em que o suspeito Manfred Kirstein foi retirado pela polícia (Foto: Horstmüller)

A atuação de Prisco se mostrou determinante para que, surpreendentemente, no dia 28 de outubro de 1971 a Comissão Disciplinar da UEFA determinasse a realização de uma nova partida entre Internazionale e Borussia Mönchengladbach. Ainda que a Inter não tivesse conseguido a vitória por 3 a 0 no Tapetão, a UEFA impôs aos alemães não só a anulação da partida, mas também a suspensão do Bökelbergstadion por três jogos em competições europeias e também uma multa de 10 mil Francos. Nunca antes havia sido tomada decisão semelhante pela UEFA e isso causou grande revolta entre os alemães.

Repercussão no meio esportivo causada pela anulação da partida entre Gladbach e Inter (Imagem: Reprodução/La Stampa)

Antes da nova partida entre Inter e Gladbach, foi realizado o jogo em San Siro que foi vencido pelos italianos por 4 a 2. Na repetição do confronto, foi definido que este seria realizado no Estádio Olímpico de Berlim. Dessa vez a Inter estava preparada para o forte poderio do ataque do Gladbach. Se algo podemos entender sobre os italianos no futebol é que eles podem ser surpreendidos uma vez no campo de jogo, mas certamente colhem lições de seus erros e frequentemente chegam às decisões e conquistam títulos quando menos se espera. Assim, graças ao conhecido catenaccio e a uma grande atuação do jovem goleiro Bordon (que chegou a defender um pênalti de Sieloff), a partida terminou 0 a 0, classificando a Inter para as quartas de final da competição. Dessa forma, o sonho europeu do time do oeste da Alemanha acabava.

Goleiro Bordon durante a partida realizada no Estádio Olímpico de Berlim (Imagem: Imago Sportfotodienst)

Apesar de anulado, o 7 a 1 aplicado pelo Gladbach entrou para a história como uma das maiores atuações de uma equipe alemã. Ainda hoje, diversas matérias jornalísticas e pesquisas são feitas a respeito desse episódio, entre as quais se destaca o livro La Coca-Cola di Boninsegna do autor Stefano Tomasoni. Hennes Weisweiler, técnico que comandava a equipe alemã, acreditava que aquele jogo havia sido o ápice da gloriosa geração que o Gladbach possuía.

Mesmo depois de quatro anos daquela fatídica “derrota”, ele se mostrava decepcionado e com muita mágoa. No ano de 1975, em entrevista para Jürgen Werner do jornal Die Zeit, Weisweiler disse: “O melhor de jogar futebol foi alcançado naquela noite (na vitória por 7 a 1). Eu e a equipe ficamos muito felizes e orgulhosos”. Na entrevista para TORfabrik, Jef Dorpmans concorda com Weisweiler: “Os alemães fizeram um jogo tão fantástico.... isso foi incrível”. Sem tanta mágoa quanto Weisweiler, o craque Netzer, com um senso de humor peculiar, disse após a decisão da Comissão Disciplinar da UEFA: “Estou vendendo minha Ferrari, não quero nada que me faça lembrar italianos”.

Para as autoridades máximas da partida, o resultado do embate jurídico foi totalmente inesperado. Dorpmans mencionou que ficou absolutamente surpreso com a decisão da Comissão Disciplinar da UEFA em repetir o jogo. Isso ocorre porque tanto ele como o delegado da UEFA, Matt Busby, entendiam que o episódio da latinha não tinha nenhuma influência sobre o resultado final do jogo. “Após a partida, eu tive uma conversa com Matt Busby e ele disse que na Inglaterra o que aconteceu teria sido impossível. Havia vários italianos nos comitês da UEFA e, sem tentar insinuar alguma coisa agora, a Inter de Milão tinha as pessoas certas no lugar certo” revelou Dorpmans.

A famosa latinha de Coca-Cola ficou com o próprio Jef Dorpmans após a partida: “Um policial me deu. Ninguém a queria. Ficou 25 anos na minha casa, antes de eu a dar ao Vitesse Arnhem”, disse ao jornal Bild. Nascido em Arnhem e ex-jogador do Vitesse, Dorpmans era um dos temas de uma pequena exposição presente no museu do clube holandês, em que se podia ver a latinha. Após mais de quatro décadas, em junho de 2012 a latinha de Coca-Cola foi entregue para o Borussia Mönchengladbach em uma cerimônia formal. É um dos itens mais singulares a serem expostos no futuro museu do clube alemão.

Stephan Schippers (dirigente do Gladbach), Wolfgang Kleff (goleiro do Gladbach na partida) e Jef Dorpmans durante a cerimônia de entrega da latinha (Foto: Bild)

A latinha de Coca-Cola que se converteu em protagonista do confronto (Foto: Site Oficial/Borussia Mönchengladbach)

Após a polêmica disputa esportiva/judicial contra o Gladbach, a Inter de Milão conseguiu com dificuldades superar o Standard Liège nas quartas de final, devido ao gol marcado fora de casa (venceu por 1 a 0 em Milão e perdeu por 2 a 1 na Bélgica). Na semifinal, os escoceses do Celtic foram superados pelos nerazzurri apenas na disputa de pênaltis (depois de dois empates em 0 a 0). Na final, a Inter enfrentou o grande Ajax de Cruyff e Neeskens. O Futebol Total holandês não tomou conhecimento do catenaccio italiano: Cruyff marcou os gols da vitória por 2 a 0. Era o segundo título do Ajax na Copa dos Campeões da Europa, e não houve latinha de Coca-Cola que impedisse isso.