A Holanda é um lugar que historicamente tem apreço pela vanguarda. É de amplo conhecimento o respeito pela tolerância social praticada por meio da adoção de políticas públicas sobre o uso das drogas, prostituição, eutanásia e aborto. No entanto, a atitude crítica e reflexiva presente na sociedade holandesa advém de muito tempo e está presente em todas as atividades humanas, que abrangem campos do conhecimento como literatura e artes visuais. Esse contexto presente nos Países Baixos permitiu que durante o século XX uma atitude reflexiva acerca do futebol tomasse corpo e se solidificasse como uma das grandes revoluções dentro do esporte: o Totaalvoetbal, ou Futebol Total em português.

Durante uma parte significativa da primeira metade do século XX, o AFC Ajax teve como treinador Jack Reynolds. Nascido no ano de 1881 em Manchester, no noroeste da Inglaterra, Reynolds teve uma carreira discreta como jogador, com um relativo sucesso apenas em equipes de menor expressão como o Grimsby Town FC e New Brompton FC. Em 1912, assim que terminou sua carreira, Reynolds mudou-se para a Suíça para treinar o FC St. Gallen. Ainda que não tenha conquistado títulos, o desempenho como treinador do clube suíço impressionava a todos devido à disciplina tática que o time apresentava. Isso levou a Federação Alemã de Futebol a contratá-lo para treinar a seleção que disputaria os Jogos Olímpicos 1916, em Berlim. Com o início da Primeira Guerra Mundial, a Olimpíada foi cancelada e Jack Reynolds foi para a Holanda que se posicionara com neutralidade no confronto.

Na Holanda, Reynolds encontrou o ambiente propício para lançar a semente daquilo que viria a se tornar uma das grandes transformações pelas quais o futebol passou. Excetuando-se o período entre 1925 e 1928, em que treinou o FC Blauw-Wit, Reynolds esteve no comando técnico do Ajax, em diferentes momentos, entre os anos de 1915 e 1947. No clube encontrou não apenas jogadores de futebol, mas diversas pessoas que dialogavam sobre táticas e versavam sobre assuntos que iam além do campo de jogo. Em parte, isso se deve ao sistema de ensino holandês que tradicionalmente permite a cada escola criar a sua própria identidade, com uma grade curricular flexível que procura se adequar as necessidades, aptidões e interesses dos alunos e suas famílias. Para se ter uma ideia, no ano de 2012 o sistema educacional holandês estabelecia que fosse obrigatório apenas lecionar a língua holandesa, Matemática e pelo menos mais dois idiomas estrangeiros.

Jack Reynolds no período em que era treinador do Ajax (Foto: J.D. Noske/Anefo)

Com tamanho poder crítico e a pluralidade na formação educacional, não era raro que Reynolds encontrasse jogadores aptos a conversar desde as táticas de futebol até arte e literatura. Dentre as discussões sobre os esquemas táticos, o Wunderteam austríaco do técnico Hugo Meisl, era uma referência importante. Durante a década de 1930, a capacidade dos jogadores austríacos de movimentarem-se constantemente e a habilidade do craque Matthias Sindelar eram aspectos enaltecidos. Na segunda metade da década de 1940, entre os jogadores com a capacidade crítica com os quais dialogava, Reynolds comandou aquele que elevaria ao ápice as táticas baseadas na força, disciplina e rotatividade em campo. O jogador em questão era Rinus Michels.

Rinus Michels, um dos três filhos de um tipógrafo e uma dona de casa, nasceu em Amsterdã no ano de 1928. Era o período entre as duas grandes guerras mundiais e a Holanda via o auge artístico do movimento De Stijl, “o estilo” holandês. Artistas holandeses propunham uma nova concepção nas artes visuais, baseada eminentemente na geometria e abstração. Piet Mondrian colocava em evidência o Neoplasticismo, com o uso das cores primárias – vermelho azul e amarelo – e linhas negras formando retângulos. Na arquitetura, Gerrit Rietveld solidificou os princípios fundamentais defendidos por De Stijl com a construção de obras como a residência Schröder (1924), em Utrecht. Linhas retas que se interseccionavam e davam a sensação de dinamismo em quadros, móveis e obras arquitetônicas. Mal sabiam os artistas que o dinamismo chegaria às táticas de futebol com a constante troca de posições que seria consagrada posteriormente pelo Futebol Total.

Piet Mondrian: Composição em vermelho, azul e amarelo, 1937-42 (Imagem: MoMA/reprodução)

Residência Schröder de Gerrit Rietveld (Foto: Ernst Moritz)

Num contexto culturalmente efervescente, Michels se tornou um jogador de futebol com carreira de sucesso. Desde cedo demonstrou vocação para a prática do futebol e com apenas 12 anos começou a treinar no Ajax, simultaneamente em que frequentava a escola. Entre 1946 e 1958, jogou pelo clube de Amsterdã, como um atacante eficaz que marcou 122 gols em 264 jogos. Como jogador, conquistou os títulos de campeão holandês nas temporadas 1946/47 e 1956/57. Paralelamente, prosseguia seus estudos acadêmicos e se graduou em Educação Física na Academia de Ensino Superior de Nicolaas Maesstraat, em 1951.

Rinus Michels, à direita da foto com os braços levantados, quando atuava pelo Ajax (Foto: Ajax/site oficial)

Equipe do Ajax em 1956: Rinus Michels é o segundo da esquerda para a direita, agachado (Foto: Voetbal Holland)

Academia de Ensino Superior de Nicolaas Maesstraat no final da década de 1930 (Foto: Stadsarchief Amsterdam)

Devido a uma séria lesão nas costas, Michels encerrou sua carreira de jogador e começou a lecionar Educação Física para crianças surdas na escola JC Amman. Em 1960, tornou-se treinador de equipes amadoras, primeiramente no JOS Watergraafsmeer e depois no AFC DWS. Com seu estilo de jogo, treinamento e táticas, utilizava métodos similares aos que Jack Reynolds aplicava, contudo com intensidade, força e movimentação muito maiores. Parte significativa desse método se devia aos conhecimentos adquiridos por Michels na escola superior de Nicolaas Maesstraat. Isso chamou a atenção do Ajax, que o contratou em 1965 com a finalidade de voltar a conquistar títulos, pois o clube não vencia o campeonato holandês desde a temporada 1959/60. Encontrou uma geração com jogadores de grande técnica, tais como: Wim Suurbier, Barry Hulshoff e, aquele que se tornaria um dos maiores da história, Johan Cruyff. O futebol passaria a ver a história de si mesmo ser reescrita.

Rinus Michels em sua estreia como treinador do Ajax (Foto: Ajax/site oficial)

Equipe do Ajax comandada por Rinus Michels em 1967 (Foto: Football Magazine)

Jogadores do Ajax com Rinus Michels durante treinamento em 1968 (Foto: Anefo)

Começaria nesse instante o Futebol Total holandês, que seria consagrado nos anos seguintes com a série de conquistas continentais do Ajax na década de 1970 e com a emblemática atuação da seleção holandesa na Copa do Mundo de 1974. É importante dizer que o Totaalvoetbal é muito mais que um sistema tático, se configura também numa maneira de ver o futebol; uma filosofia de jogo. Segundo Marilena Chauí, Filosofia é a “decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido”. Ao tomar uma atitude filosófica acerca do jogo, Michels e seus comandados questionariam boa parte do status quo vigente nos sistemas táticos no futebol. Posições definidas e imutáveis de jogadores nas partidas eram o que vigorava nas equipes de futebol. Assim, a atitude filosófica do Ajax colocaria em xeque tudo aquilo que estava estabelecido.

NAC Breda contra Ajax (0-1): disputa de bola entre Johan Cruyff e Jan van Gorp, 1967 (Foto: Eric Koch)

É interessante como, da mesma maneira que Michels, demais vanguardistas holandeses ao longo da história costumam propor formas inovadoras de ver o mundo e de se expressar que os distinguem de outros locais. Para exemplificar, nos séculos XV e XVI, enquanto na Renascença Italiana as figuras religiosas, eclesiásticas e da nobreza eram frequentes nos quadros, na Renascença do Norte (particularmente nos Países Baixos) Hieronymus Bosch pintava quadros totalmente inovadores com imagens híbridas: meio homens, meio animais. No século XIX, Dr. Paul Gachet disse sobre o trabalho pós-impressionista de seu paciente Vincent van Gogh: “Cada vez que olho seus quadros, vejo alguma coisa nova”. Por fim, Dr. Gachet acreditava: “Ele é mais que um grande pintor, é um filósofo.” Seja nas artes ou no futebol, os vanguardistas holandeses se notabilizariam por ideais inovadores imersos numa atitude filosófica de ver o mundo.

Detalhe de O Jardim das Delícias Terrenas (1504) , de Hieronymus Bosch (Imagem: Museu do Prado/reprodução)

A Noite Estrelada (1889) de Vincent van Gogh (Imagem: MoMA/reprodução)

No futebol, com a notável colaboração de uma brilhante geração de jogadores, Michels começou a elaborar um sistema em que jogadores saiam constantemente de suas posições e, rapidamente, o espaço deixado era ocupado por outro companheiro de equipe. A estrutura era mantida, mas os jogadores movimentavam-se incessantemente. Nesse sistema, nenhum jogador de linha tinha uma posição imutável, o que fazia com que cada deles pudesse ser atacante, meia ou zagueiro. Isso levaria muitos a chamarem esse sistema de Carrossel Holandês.

Momento em que Cruyff marca na goleada por 4 a 1 contra o Go Ahead Eagles em jogo válido pela Eredivisie de 1967 (Foto: Jac de Nijs)

No campeonato nacional o resultado foi imediato: ganhou consecutivamente o título da Eredivisie nos anos de 1966, 1967 e 1968. Entretanto, a equipe ainda carecia de uma maior experiência internacional, o que fez com que perdesse o título da Copa dos Campeões da Europa para o Milan por 4 a 1, na temporada 1968-69. Com o início da década de 1970, a Europa presenciaria a hegemonia holandesa na principal competição interclubes do continente, primeiramente com o título do Feyenoord em1969-70, e em seguida o tricampeonato do Ajax em 1970-71, 1971-72 e 1972-73. Nesse momento é que toda a Europa conheceu todo o poderio que possuía a equipe formada por Michels. O Ajax e seus jogadores – principalmente Cruyff – se tornaram figuras constantes nas capas das revistas especializadas em futebol.

Velibor Vasović, capitão do Ajax, levanta a taça da Copa dos Campeões da Europa em 1971 (Foto: Getty)

Rainha Juliana cumprimenta Rinus Michels e Johan Cruyff pela conquista da Copa dos Campeões em 1971 (Foto: Anefo)

Capa da Revista France Football com destaque para o prêmio Ballon D’or de 1971 concedido para Cruyff (Imagem: France Football)

Dentre os três títulos europeus do Ajax de Cruyff, é provável que o mais emblemático tenha sido o conquistado contra a Inter de Milão, na final de 1972. A vitória da equipe holandesa por 2 a 0 colocou a imprensa europeia em polvorosa. De forma contundente, o Catenaccio italiano era dado como morto e uma nova era no futebol se anunciava, na qual sistemas eminentemente defensivos não teriam mais espaço. Na Holanda, o jornal Algemeen Dagblad enfaticamente enunciou em sua primeira página: “O sistema da Inter ficou em cacos. O futebol defensivo acabou!” Outros jornais, como o diário alemão Hamburger Abendblatt, mencionavam que o Ajax percorria um caminho que o aproximava do lendário Real Madrid de Di Stéfano e Puskás. O tempo diria que as análises precipitadas sobre o fim do Catenaccio estavam equivocadas. Muitas equipes com sistemas que privilegiaram a defesa obtiveram sucesso posteriormente.

“Ajax no encalço do Real Madrid”, destacavam os alemães (Imagem: Hamburger Abendblatt)

Rinus Michels já houvera se transferido do Ajax para o FC Barcelona em 1971, logo após a vitória por 2 a 0 contra o Panathinaikos, na final Copa dos Campeões da Europa. No entanto, seu legado permanecia, e o clube de Amsterdã continuava a prosperar no comando de Ștefan Kovács. Michels disse que foi movido por um novo desafio, mas o alto salário que ele receberia no clube catalão desempenhou um papel fundamental nessa mudança. Posteriormente, Cruyff e Neeskens também se transferiram para a Catalunha. Fato é que as táticas inovadoras de Michels influenciam o futebol catalão até os dias atuais. Johan Cruyff, um dos pilares que estabeleceram a maneira de jogar das equipes do Barcelona ao longo dos anos, disse ao jornal Marca: “Eu sempre admirava sua liderança. Tanto como jogador quanto como técnico, ninguém me ensinou tanto quanto ele. Eu sempre tentei imitá-lo, e esse é o maior elogio que se pode dar.”

O impacto desse sistema inovador permaneceu em solo catalão ao longo dos anos, sendo recriado e revitalizado por diversos treinadores, tais como Cruyff com o dream team blaugrana do início da década de 1990, e Pep Guardiola mais recentemente. Dessa forma, ainda é possível observar a influência de Rinus Michels no Barcelona dos dias atuais. Isso ocorre em aspectos simples, como a participação intensa dos volantes no ataque, ou em questões altamente elaboradas, como a tática Tiki-taka utilizada pela equipe de Messi, Xavi e Iniesta, e também pela seleção da Espanha comandada por Vicente Del Bosque. Basicamente, o que diferencia o Futebol Total do Tiki-taka é que o estilo holandês tem como principal característica a troca de posições dos jogadores, já o sistema espanhol prioriza a posse de bola e a constante troca de passes.

Rinus Michels e Johan Cruyff durante a passagem de ambos pelo Barcelona (Foto: Getty)

Cruyff comandando o Barcelona do então jogador Pep Guardiola (Foto: Diario Sport)

Sem dúvida, a notoriedade que o Futebol Total holandês adquiriu advém, em grande parte, da participação holandesa na Copa do Mundo de 1974. Michels assumiu a seleção alguns meses antes da Copa, conciliando com o trabalho no Barcelona. Havia problemas de relacionamento entre os jogadores dos eternos rivais Ajax e Feyenoord. Com uma disciplina rígida, Michels aparou algumas arestas e teve o elenco totalmente sobre o seu comando. Aliás, sua característica como um técnico disciplinador levou-o ao apelido De Generaal, ou “o general” em português. Com Johan Cruyff capitaneando a seleção, aquele time se tornaria a expressão máxima do Futebol total.

O mundo do futebol ficaria impressionado, somente o goleiro Jan Jongbloed não mudava de posição durante as partidas. O carrossel holandês contava na defesa comWim Suurbier, Wim Rijsbergen, Arie Haan e Ruud Krol. No meio de campo, estavam Wim Jansen, Johan Neeskens e Willem van Hanegem. Por fim, o ataque possuía Johnny Rep, Rob Rensenbrink e Johan Cruyff. Os jogadores exerciam múltiplas funções no sistema, e frequentemente o adversário com a posse de bola se via cercado por vários jogadores holandeses. A linha de impedimento que faziam colocava os oponentes fora da condição de jogo. Genialidade ou loucura? Como diria o célebre pensador holandês Erasmo de Roterdã: “Tudo o que fazem os homens está cheio de loucura”. Entretanto, é importante ressaltar que o sistema de jogo elaborado por Rinus Michels não se resumia apenas ao âmbito tático. Era necessário também um intenso trabalho físico, a fim de que os jogadores estivessem aptos para desempenhar os constantes deslocamentos que eram exigidos pelo sistema de jogo.

Elenco da Holanda na Copa do Mundo de 1974 (Foto: Football Magazine)

Formação da Holanda comandada por Rinus Michels em 1974 (Arte: Rafael Mateus/VAVEL Brasil)

Assim, a excelência na condição física dos jogadores holandeses era fundamental para uma perfeita sincronia na alternância de posições dos jogadores no decorrer das partidas. Na preparação física, o aprendizado adquirido (e aprofundado ao longo dos anos) por Michels na escola de ensino superior de Nicolaas Maesstraat se mostrou de grande importância. Por isso, além do ponto de vista tático e da própria prática do futebol, existia um relevante conhecimento acadêmico sobre Educação Física na filosofia de jogo holandesa de 1974. Toda filosofia, incluindo as jogo, possuem conteúdos conceituais e empíricos que, habitualmente, podem ser adquiridos no meio acadêmico. Como salienta Marilena Chaui, toda filosofia “trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou ideias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado.”

Jogadores holandeses no centro esportivo de Zeist. Da esquerda para direita: Suurbier, Dr. van den Akker, Neeskens (deitado) e Cruyff (Foto: Bert Verhoeff)

Elenco da Holanda durante a preparação para a Copa do Mundo de 1974 (Foto: Getty)

Uruguai, Bulgária, Argentina, Alemanha Oriental e Brasil foram equipes que enfrentaram, e sofreram, com o Futebol Total holandês de 1974. Ainda que tenha perdido a final por 2 a 1 para a Alemanha Ocidental de Franz Beckenbauer, a equipe holandesa ficou para a história dos mundiais. Talvez os únicos casos similares sejam a Hungria de 1954 e o Brasil de 1982, em que os derrotados sejam tão enaltecidos e permaneçam na memória de todos ligados ao futebol. Criou-se uma identidade para o futebol holandês. Assim como é possível identificar um escrito de Erasmo de Roterdã, uma casa projetada por Gerrit Ritvelt e um quadro de Vincent van Gogh, o estilo holandês de jogar futebol ficou simbolizado pela geração de Cruyff e Neeskens, comandada por Rinus Michels.

Cruyff e Beckenbauer antes da final da Copa do Mundo de 1974 (Foto: Peter Robinson/PA/Empics)

Mesmo derrotados na final, a seleção holandesa é recebida por milhares de pessoas em Amsterdã (Foto:Getty)

Por uma ironia do destino, catorze anos depois da derrota para a Alemanha na final da Copa do Mundo, Rinus Michels comandaria a seleção holandesa na Eurocopa de 1988, que também seria realizada em solo alemão. Dessa vez, contando com uma geração de jogadores brilhantes como Ruud Gullit, Marco Van Basten, Frank Rijkaard e Ronald Koeman, Michels conquistaria o título. A vitória por 2 a 1 em Hamburgo contra os donos da casa, classificou a equipe de Michels para a final contra União Soviética do grande goleiro Rinat Dasayev. No mesmo palco da dolorosa derrota de 1974, o Olympiastadion de Munique, a celebração holandesa seria coroada com os gols de Gullit e Van Basten, na vitória por 2 a 0 contra os soviéticos. Finalmente, aquele que seria considerado o pai do Futebol Total conseguiu levar seu país à conquista de um título. A Holanda era campeã da Europa, e na comemoração, Michels não conseguiu conter a emoção.


Rinus Michels comemorando a conquista da Eurocopa de 1988 (Foto: Getty)

É importante ressaltar que existem pré-requisitos necessários para que uma equipe desenvolva esse estilo de jogo. Além de treinadores que se identifiquem com esse sistema, é fundamental a presença de jogadores que possuam, além de capacidade técnica e física, uma inteligência a respeito do jogo que os possibilitem a atuar em diferentes posições. Um jogador como Cruyff não era apenas tecnicamente acima da média, ele também tinha a inteligência de jogo que o permitia ocupar espaços que estavam vagos devido ao deslocamento de um companheiro. Tal inteligência também fazia com que o craque holandês desse um passe para um companheiro melhor posicionado e se colocasse em campo numa melhor condição para desenvolver uma jogada. Ainda que o coletivo holandês se sobressaísse, características individuais como as de Cruyff eram de extrema importância no esquema de jogo da Holanda. Devido à sua complexidade, com o passar dos anos, o futebol praticado pela seleção holandesa por vezes não correspondia verdadeiramente ao Futebol Total.

Quando a seleção holandesa da Copa do Mundo de 2010, treinada por Bert van Marwijk, apresentou um futebol mais pragmático e defensivo, Cruyff a criticou ferozmente em entrevista para o jornal catalão El Periódico: “Lamentavelmente, eles jogaram de forma muito suja, praticando um ‘antifutebol’.” Além disso, ele considerava o futebol praticado pela Holanda “feio, desprezível, duro e hermético”. Ainda que se possa questionar a acidez das declarações, que advém da personalidade forte de Cruyff, suas críticas tinham fundamento. O legado de Michels, que identificava a seleção da Holanda, estava sendo deixado de lado em prol de um pragmatismo que no final também não obteve êxito (derrota para a Espanha na final).

Jogadores holandeses lamentam a derrota para Espanha na final da Copa do Mundo de 2010 (Foto: Reuters)

Recentemente, em entrevista para a ESPN Brasil, o técnico da Holanda, Louis van Gaal, comentou sobre as críticas que a equipe de van Marwijk sofreu: “Eu quero jogar à escola holandesa, eu sempre treinei nesse espírito.” Se o futebol que será praticado pelos holandeses na Copa do Mundo de 2014 corresponderá às palavras de van Gaal, o mundo do futebol só terá conhecimento quando a bola começar a rolar. “A verdade é uma só: o futebol se faz dentro de campo”, como diria Michels. Certo é que, além de possuir um treinador com o currículo vitorioso, a seleção holandesa contará com jogadores de qualidade em seu elenco, tais como: Robin van Persie, Arjen Robben e Wesley Sneijder.

Em amistoso realizado em 2013, Van Persie comemora um de seus três gols na goleada por 8 a 1 contra a Hungria (Foto:Reuters)

Em suma, há potencial para que a Holanda apresente um futebol que dignifique suas tradições e simbolize a retomada de um estilo que encantou o mundo em 1974. Momento que foi emblemático e que justifica a escolha da FIFA de conceder a Rinus Michels o prêmio de Melhor Treinador de Futebol do Século XX. Futebol instigante como os textos de Erasmo de Roterdã, vibrante como as pinceladas agitadas de van Gogh, moderno e inovador como movimento De Stijl. Se assim ocorrer na Copa, todos os apaixonados pelo futebol – torcedores holandeses ou não – poderão ver uma seleção que apresente um estilo de jogo que remeta, pelo menos em parte, ao grande legado deixado por seu mestre. Uma forma de jogar que evidencie a identidade do futebol holandês em sua mais perfeita essência: a filosofia do Futebol Total de Rinus Michels.

Já no final da vida, Michels posa ao lado de sua estátua localizada no KNVB Academy (Foto:Michael Kooren/Reuters)