Em 7 de julho de 1974, quando o árbitro inglês Jack Taylor apitou o final da Copa do Mundo de 1974, um dos capítulos mais emblemáticos da história do futebol terminava. A Alemanha Ocidental conquistava seu segundo título mundial. No entanto, o Carrossel Holandês do técnico Rinus Michels se estabeleceu nesse instante como uma das maiores revoluções no âmbito tático ocorridas durante o século XX. Até então desconhecida do grande público, a seleção da Holanda era colocada em evidência de uma forma singular pela geração capitaneada por Johan Cruyff. Mas como a Oranje era antes desse momento histórico? Como jogava e quais eram os treinadores e jogadores de destaque? Tais perguntas podem ser respondidas se observarmos o histórico holandês pré-1974.

Seleção criada no início do século XX, o primeiro jogo da Holanda ocorreu em 30 de abril de 1905 contra a Bélgica. O jogo valia por um torneio amistoso denomidado Coupe van den Abeele e terminou empatado em 1 a 1, gols de Eddy de Neve para a Holanda e Ben Stom que marcou contra. Na prorrogação, o atacante Eddy de Neve – que atuava pela equipe do CVV Velocitas e foi um dos primeiros ídolos holandeses no futebol – marcou mais três gols que deram a vitória para a seleção holandesa no confronto.

Ainda que tivesse sido criada há pouco tempo, a equipe holandesa se mostrava competitiva no início do século XX. Sob o comando do técnico inglês Edgar Chadwick, conquistaria seus primeiros grandes feitos: as medalhas de Bronze nos Jogos Olímpicos de Londres, em 1908, e Estocolmo, em 1912. Na época, tinha como jogadores de destaque Nico Bouvy e Jan Vos (foram os responsáveis por marcar 12 dos 17 gols em 1912). Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, as Olimpíadas que aconteceriam em Berlim não foram disputadas.

A competição olímpica foi retomada na Antuérpia em 1920, e mais uma vez a seleção holandesa conquistou o Bronze, com atuação importante dos jogadores Ber Groosjohan e Jaap Bulder. Desta vez, o técnico foi o inglês Frederick Warburton. É importante lembrar que nesse período não havia o mundial organizado pela FIFA (o primeiro ocorreu apenas em 1930, no Uruguai), o que tornava o torneio olímpico a mais importante competição futebolística entre nações.

Seleção da Holanda que conquistou o Bronze nos jogos Olímpicos de 1912. O técnico Edgar Chadwick é o primeiro, da esquerda para direita. (Foto: Nationaal Achief)
Nico Bouvy e Jan Vos, destaques na Olimpíada de 1912 (Foto: KNVB Fotocollectie)
Holanda medalhista de Bronze nas Olimpíadas de 1920 (Foto: KNVB Fotocollectie)

Apesar das ótimas participações nas Olimpíadas, a seleção holandesa não manteve o mesmo nível técnico durante década de 1920. A equipe só voltaria a ter desempenho melhor em meados da década de 1930. Mais uma vez, um técnico inglês comandaria a Holanda nesse período: Robert Glendinning. Aliás, o papel dos técnicos ingleses foi fundamental na formação do futebol holandês na primeira metade do século XX. A influência desses profissionais se mostrou muito importante para o nível de excelência atingido pela Holanda posteriormente.

Paralelamente ao fato da seleção holandesa ser conduzida por técnicos ingleses às três medalhas olímpicas, outro técnico inglês, Jack Reynolds, se estabelecia na Holanda e lançava a semente de uma nova forma de jogar em que jogadores não possuíam posições fixas. Décadas depois, Rinus Michels, um dos atletas comandados por Reynolds no Ajax durante a década de 1940, elevaria ao ápice o conceito da troca de posições ao longo da partida. Na década de 1960, Vic Buckingham, outro técnico inglês, reconheceria o potencial de um jovem atleta das categorias de base do Ajax no período em que comandou a equipe. Tal atleta era Johan Cruyff.

Edgar Chadwick, Robert Glendenning, Jack Reynolds e Vic Buckingham (Montagem: Rafael Mateus/VAVEL Brasil com fotos de Anefo, Nationaal Archief e Getty)

Muito antes de Rinus Michels e Johan Cruyff apresentarem ao mundo o Futebol Total, Robert Glendenning foi o responsável por conduzir a Holanda às suas primeiras participações em Copas do Mundo. Glendenning era um técnico que conseguia obter de seus jogadores o respeito e o apreço de uma forma única. A dedicação aos seus comandados era tamanha que, numa imagem que se tornaria simbólica, chegou a carregar sobre suas costas o contundido atacante Beb Bakhuijs. O jogador houvera se machucado numa partida contra a Bélgica, no ano de 1937. Com atitudes como essa, a relação entre jogadores e técnico era de extrema confiança, o que levaria o elenco holandês a conquistar uma vaga entre as equipes que disputariam o mundial de 1934.

Momento em Glendenning que carregava Bakhuijs (Foto: Nationaal Archief)

Na disputa das Eliminatórias da Copa do Mundo de 1934, que seria disputada na Itália, a Holanda jogou contra a Irlanda e Bélgica. A Holanda se classificou para a Copa com uma campanha invicta. Antes do mundial, destaca-se a goleada por 9 a 3 aplicada contra a Bélgica. O resultado demonstrava todo o potencial técnico da equipe – particularmente do atacante Leen Vente, que foi o artilheiro dessa partida com 5 gols – e também o viés ofensivo que Glendenning atribuiu ao sistema de jogo da equipe.

Robert Glendenning formou a seleção holandesa da Copa do Mundo de 1934 de acordo com o sistema 2-3-5, também conhecido como Pirâmide. Esse sistema já era consagrado na Grã-Bretanha desde o fim do século XIX e, segundo o Caxton Association Football, publicado em 1960, há relatos que o Wrexham FC já houvera utilizado um sistema similar na conquista da Copa do País de Gales de 1877-78. Na década de 1890, esse sistema de jogo se tornou padrão na Inglaterra e serviu de referência para outros países. Com algumas variações, foi utilizado por grande parte das equipes que disputavam competições de alto nível até aproximadamente 1940. Era um sistema de jogo rígido, em que jogadores não alteravam de posição, algo bem diferente do Futebol Total de Michels.

Em 1934, o time base holandês tinha como titulares na defesa o goleiro Gejus van der Meulen, e os defensores Mauk Weber e Sjef van Run. Apenas esses jogadores tinham a função específica de conter o ataque adversário. No meio campo, Wim Anderiesen, Henk Pellikaan e Puck van Heel eram os responsáveis por contribuir na defesa, mas que primordialmente davam suporte à elaboração de jogadas ofensivas do time. Por fim, Frank Wels, Leen Vente, Beb Bakhuijs, Kick Smit e Joop van Nellen formavam o ataque do time. Pela disposição dos jogadores, é possível observar o caráter extremamente ofensivo do time, característica que marcaria outras seleções holandesas ao longo dos anos.

Equipe da Holanda na Copa do Mundo de 1934 (Arte: Rafael Mateus/VAVEL Brasil)

Especificamente no ataque, os jogadores da seleção de 1934 tinham funções pré-determinadas pelo técnico Robert Glendenning. Pelos lados, Wels jogava pela direita e van Nellen pela esquerda, sendo os responsáveis pelas jogadas de linha de fundo. Vente e Smit ficavam mais pelo meio, com Bakhuijs atuando centralizado. O trio Vente-Smit-Bakhuijs marcaria todos os gols holandeses na campanha, desde as eliminatórias até a conclusão da participação holandesa na Copa do Mundo de 1934. Com esses jogadores, a primeira partida da Holanda seria realizada contra a Suíça, no antigo Estádio San Siro, em Milão.

Isso ocorreu há 80 anos, em 27 de maio de 1934. Fato curioso é que, apesar de se consagrar como a Laranja Mecânica em 1974, nesse jogo a Holanda vestia um uniforme primordialmente azul (camisas e calções). Apenas os meiões levavam a cor que caracterizaria a seleção holandesa. Um público de aproximadamente 33 mil pessoas acompanhou a partida. O jogo era eliminatório e a Holanda era considerada a favorita, devido ao poderio do ataque apresentado em amistosos e nas Eliminatórias da Copa (incríveis 22 gols em 4 jogos).

Entretanto, a Suíça, com uma sólida defesa e um sistema de jogo que privilegiava o contra-ataque, abriu o placar com o gol de Leopold Kielholz, logo aos 7 minutos. O gol de empate da Holanda, e conseguentemente o primeiro gol da Oranje em Copas do Mundo, foi marcado por Smit aos 29 minutos do primeiro tempo. Antes do intervalo, Kielholz colocou a Suíça novamente em vantagem, aos 43 minutos. No segundo tempo, os holandeses foram ao ataque, mas André Abegglen ampliou o placar para Suíça aos 21 minutos. Três minutos depois, Vente chegou a marcar o segundo gol da Holanda, contudo a partida terminou com a vitória da Suíça por 3 a 2. Terminava nesse instante a participação da Holanda em sua primeira Copa do Mundo. Um futebol vistoso, mas que não conseguiria obter êxito numa Copa: essa parece essa ser a sina da Holanda desde 1934.

Quatro anos depois, com um elenco envelhecido e com algumas mudanças, a seleção da Holanda não teria o mesmo desempenho. Ainda sob o comando de Glendenning, mas sem Beb Bakhuijs – um dos principais jogadores da seleção de 1934 – que já não fazia mais parte da equipe. Ainda assim, o sistema de jogo 2-3-5 foi mantido com a entrada de Bertus de Harder no lugar de Bakhuijs. Outras mudanças foram feitas, como a entrada do goleiro Adri van Male, do defensor Bertus Caldenhove e do meio campista Bas Paauwe.

Com essas modificações, a Holanda conseguiu a classificação para a Copa do Mundo de 1938 após um duro empate com a Bélgica em 1 a 1. Henk van Spaandonck foi o responsável por marcar o gol que levou a seleção holandesa à Copa que seria disputada na França. Mais uma vez, a participação holandesa se resumiu a uma partida, contra a Tchecoslováquia. O jogo aconteceu em Le Havre, no Estádio Cavée Verte, em 5 de junho de 1938. A Oranje foi facilmente vencida por 3 a 0, gols de Josef Kostalek, Josef Zeman e Oldrich Nejedly. Demoraria até 1974 para que a seleção Holandesa voltasse a disputar uma Copa do Mundo.

Há 80 anos, a Holanda não era Mecânica, tampouco laranja. Com o uniforme azul, começava a escrever sua história na competição futebolística entre nações mais importante do mundo. Desde cedo, a seleção holandesa procurou privilegiar um futebol com características ofensivas e que agradavam o público ligado ao futebol. Se os técnicos ingleses foram os principais responsáveis por introduzir as táticas do futebol nos Países Baixos, também é importante notar que os holandeses adaptaram esses ensinamentos dentro do contexto em que viviam.

Num âmbito em que a vanguarda se insere nas artes visuais, arquitetura, literatura e em outras áreas, o futebol holandês condensou todo o conhecimento adquirido de técnicos como Chadwick, Warburton, Reynolds e Glendenning, e introduziu sua própria forma de jogar. O que fez surgir uma filosofia de jogo identificada pelo Futebol Total de Rinus Michels, consagrada pelo Ajax do início da década de 1970 e na seleção holandesa de 1974.

Leen Vente comemora o gol contra a Escócia em amistoso no ano de 1938 (Foto: KNVB Fotocollectie)

Na mesma medida, jogadores como Leen Vente, Beb Bakhuijs e Kick Smit fundamentaram as bases de um futebol técnico, o que auxiliou no surgimento de jogadores como Johan Cruyff, Johan Neeskens, Ruud Gullit, Marco van Basten, Dennis Bergkamp, entre outros. É provável que uma boa campanha para os comandados de Louis van Gaal na Copa de 2014 esteja norteada no reconhecimento da própria tradição do futebol holandês. Um futebol que frequentemente prima por um sistema de jogo que, além da parte tática, propicia que as habilidades individuais dos jogadores sejam enaltecidas e aplicadas.

Foi isso o que permitiu que a seleção holandesa se caracterizasse historicamente como uma equipe que valoriza a técnica. Uma tradição que se desenvolveu ao longo dos anos, que atingiu seu ápice em 1974 com Cruyff, e se iniciou com o excelente ataque formado por Vente, Bakhuijs e Smit na Copa de 1934. Uma forma técnica e ofensiva de jogar futebol, que nasceu décadas antes do Totalvoetbal de Rinus Michels.

Momento em que Leen Vente marca para Holanda em amistoso contra a Bélgica em 1939 (Foto: KNVB Fotocollectie)

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Rafael Mateus
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