Nas últimas semanas, a crise política na Ucrânia tem tomado boa parte da cobertura jornalística mundial. Iniciada a partir da decisão do ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovych em assinar um acordo com a Rússia, ao invés de estabelecer uma cooperação com a União Europeia, esse fato expôs algumas das questões históricas que envolvem o país. Como parte integrante da antiga União Soviética, a Ucrânia teve um papel destacado dentro do contexto soviético, particularmente nas áreas da agricultura e indústria. No âmbito esportivo, o futebol desenvolvido na Ucrânia contribuiu para que equipes soviéticas desempenhassem importante papel em competições internacionais durante o século XX. Devido aos grandes feitos realizados – particularmente no comando do Dínamo de Kiev – um nome inserido nesse contexto se converteu num ícone ucraniano no futebol: Valeriy Lobanovskyi.

Manifestação ocorrida em 29 de novembro de 2013 na cidade de Kiev a favor do acordo com a União Europeia (Foto: Reuters/Gleb Garanich)

Lobanovskyi nasceu na cidade de Kiev no dia 6 de janeiro de 1939. Alguns meses depois a Segunda Guerra Mundial eclodiria, o que fez com que a cidade em 1941 se tornasse o palco de um dos episódios mais dramáticos do período: a Batalha de Kiev. Após a derrota nazista em 1945, a Ucrânia se tornou parte da URSS. Pouco tempo depois, o jovem Lobanovskyi começaria a jogar nas categorias de base Dínamo de Kiev, simultaneamente em que ia para escola. Desde jovem, ele era um entusiasta do progresso científico. Como salienta o escritor inglês Jonathan Wilson no livro Inverting the Pyramid: The History of Football Tactics, a influência daquele período foi determinante na formação de Lobanovskyi.

Durante a juventude Lobanovskyi, a URSS construiu seu primeiro reator movido a energia nuclear e lançou o satélite Sputnik. Também seria responsável pela primeira viagem de um homem ao espaço, realizada pelo cosmonauta Iuri Gagarin em 1961. Na mesma época, a própria cidade de Kiev se tornaria um importante centro da indústria de tecnologia soviética. O primeiro instituto de cibernética da URSS foi criado na capital ucraniana já em 1957, fato que o fez adquirir uma posição de liderança mundial no que se refere aos sistemas de controle automatizado, inteligência artificial e modelo matemático. Na década de 1960, esse instituto soviético desenvolveu pesquisas que levariam a criação de um protótipo do computador pessoal moderno. Em 1965, um grupo de técnicos liderado pelo engenheiro Victor Glushkov criava o computador MIR.

Iuri Gagarin, antes de ser levado ao espaço a bordo da Vostok 1 (Foto: Time Magazine/reprodução)
Glushkov, sentado, e sua equipe enquanto desenvolviam seus estudos no Instituto de Cibernética em Kiev (Foto: uacomputing.com)
MIR-1, protótipo do primeiro computador pessoal criado pela equipe liderada por Glushkov (Foto: uacomputing.com)

Nessa época, Lobanovskyi estudou no Instituto Politécnico de Kiev. A abrangencia que o uso dos computadores – e suas possíveis aplicações – tinha nas áreas do conhecimento humano se tornava cada vez mais evidente na URSS. Para exemplificar, no final da década de 1970, o MArchI (Instituto de Arquitetura de Moscou) desenvolveu pesquisas de vanguarda em matemática e computação com a finalidade de criar soluções projetuais.

Com o auxílio de grafos e matrizes, estudos foram feitos com o objetivo de se atingir soluções mais adequadas aos projetos arquitetônicos. Esse pode ser considerado um dos momentos de grande importância no desenvolvimento daquilo que hoje é chamado Projeto Arquitetônico Assistido por Computador (CAAD). Nesse contexto histórico, não é surprendente que Lobanovskyi tenha se interessado pelas possibilidades do uso das disciplinas exatas e tecnologia, e com isso levasse o conhecimento nessa área para o futebol.

Estudos realizados no MArchI com o uso de diagramas e grafos matemáticos na elaboração de plantas arquitetônicas (Imagem: L N Avdot'in)

O próprio Lobanovskyi admitiria posteriormente que sua formação no Instituto Politécnico desempenhou um papel fundamental na abordagem sistemática e no raciocínio lógico que ele teria como técnico. Tomando por base a matemática, ele explicava que o futebol seria um sistema de 22 elementos, dividido em dois subsistemas de 11 elementos, que se deslocam dentro de uma área definida (o campo de jogo). Esse sistema é sujeito a uma série de restrições impostas, ou seja, as próprias regras estabelecidas no futebol. De uma maneira racional, se os dois subsistemas se tornassem equivalentes, ou se anulassem, o resultado da partida seria empate. Se fosse algum deles se mostrasse mais eficiente na proposta de jogo, este ganharia. É razão a serviço do futebol.

Edifício sede do Instituto Politécnico de Kiev (Foto: KPI)

Lobanovskyi acreditava que a eficiência do subsistema de 11 elementos é maior do que a soma das eficiências dos elementos que o integram. Em outras palavras, o conjunto das capacidades técnicas individuais de todos os jogadores é inferior a eficiência de um sistema de jogo bem elaborado. Diante disso, Lobanovskyi acreditava que o futebol não se tratava dos indivíduos, mas sim das coligações e as conexões existentes entre eles. Tais ideias se solidificaram não apenas com seu aprendizado no Instituto Politécnico, mas também com a experiência adquirida em seus anos atuando como jogador de futebol.

Além de desenvolver seus estudos no Instituto Politécnico, Lobanovskyi era um atacante de boa qualidade técnica que havia estreado pelos profissionais do Dinamo de Kiev em 1957. Aos 22 anos de idade, ele fez parte do histórico time do Dínamo que venceu pela primeira vez o Campeonato Soviético de Futebol, no ano de 1961. Também pelo Dínamo, conquistou a Copa da União Soviética de 1964. Jogou pela equipe de Kiev até 1964, se transferindo em seguida para o Chornomorets Odessa. Permaneceu apenas um ano no time, indo jogar na temporada seguinte no FC Shakhtar. Encerraria sua carreira como jogador na equipe de Donetsk no ano de 1968.

Lobanovskyi como jogador do Dínamo (Foto: Nekropole/reprodução)
Equipe do Dínamo de Kiev campeã do Campeonato Soviético de futebol em 1961 (Foto: Fan-Dynamo Kyiv/reprodução)

Após mais de uma década como jogador, Lobanovskyi assumiu como treinador do FC Dnipro Dnipropetrovsk em 1969. No clube, começou a utilizar métodos científicos na preparação da equipe. Ele dizia que: “É impossível confiar na sorte ou em acidentes no futebol moderno. É necessário criar o conjunto, um elenco que se subordina à ideia comum de jogo”. Na terceira temporada treinando a equipe, Lobanovskyi conduziu o clube para a divisão principal do campeonato soviético. Durante a passagem pelo Dnipro, ele fez com que o especialista bioenergética e estatístico Anatoliy Zelentsov se tornasse parte da comissão técnica. Lobanovskyi e Zelentsov davam grande ênfase para a preparação física, analisando detalhadamente cada jogador.

Ambos acreditavam que todos jogadores deveriam memorizar cada jogada elaborada antes do início da partida. Lobanovskyi e Zelentsov também criaram um programa de computador que analisava os jogos dos adversários, e segmentava o campo de jogo em nove partes iguais. Com essas áreas do campo definidas, eles mensuravam quantas vezes cada jogador entrava nas áreas delimitadas, e a intensidade de trabalho realizada pelo futebolista com e sem o domínio da bola. Apesar de conseguir resultados expressivos em campo, o Dnipro era um clube com recursos limitados que o impossibilitavam de conseguir êxitos maiores e competir de igual para igual com equipes do porte do Dínamo de Kiev, Spartak Moscou e CSKA Moscou.

Segmentação do campo de jogo proposta por Lobanovskyi e Zelentsov durante a marcação pressão na saída de bola adversária (Imagem: Rafael Mateus/ VAVEL/Brasil)

No entanto, não demorou muito para que Lobanovskyi e Zelentsov tivessem a chance de demonstrar seu trabalho inovador num clube de ponta. Depois da saída de Alexander Sevidov do comando do Dínamo em 1973, Lobanovskyi foi o escolhido para treinar a equipe. Sevidov foi demitido restando ainda três jogos da temporada de 1973 e o Dínamo terminou o campeonato em segundo, atrás do FC Ararat Erevan, equipe armênia que conquistaria naquele ano seu único título no campeonato soviético de futebol.

Dessa forma, Lobanovskyi retornava para sua cidade natal no final de 1973 para se tornar o técnico do Dínamo. Ele chegou ao Dínamo como o líder de uma comissão técnica formada por quatro pessoas. Lobanovskyi tinha como responsabilidade específica a elaboração de sistemas de jogo, Zelentsov comandava a preparação física de cada um dos dos jogadores, Oleh Bazylevych era o responsável por auxiliar o treinamento de campo e, por fim, Mykhaylo Oshemkov reunia todos os dados estatísticos dos jogos.

O trabalho desenvolvido foi elaborado de maneira pormenorizada. A preparação do Dínamo foi dividida em três níveis que compreendiam:

1) Treinamento técnico individual de cada um dos jogadores do elenco. Todos atletas deveriam estar aptos a cumprir as tarefas determinadas por Lobanovskyi. Era imperativo que todos os jogadores relacionados para o jogo estivessem bem preparados fisicamente, mentalmente e taticamente para as funções pré-estabelecidas;

2) Todas as táticas e funções a serem efetuadas durante o jogo eram específicas para cada um dos jogadores. Elas eram elaboradas de acordo com o estudo de qualidades e defeitos apresentados pelos adversários. O papel de cada um dos integrantes da equipe durante partida era meticulosamente definido;

3) Havia uma estratégia concebida para uma competição como um todo. Cada jogo era colocado em um determinado contexto, partindo do pressuposto que é impossível manter um nível máximo de atuação durante um período muito grande. Com esse pressuposto, derrotas da equipe em jogos no final da temporada – com o título já conquistado previamente – eram toleradas. Em jogos fora de casa, particularmente contra adversários qualificados que impusessem ao time grande desgaste físico e mental, empates eram vistos como resultados satisfatórios.

Com tamanho estudo e planejamento, o sistema elaborado no Dínamo de Lobanovskyi se tornaria conhecido como Futebol Científico. É interessante como os ideais de Lobanovskyi entravam em consonância com o que pregava o regime comunista soviético: em ambos o coletivo sempre está acima do indivíduo. Nesse sentido, por mais que um jogador tivesse uma técnica apurada, este sempre estava a serviço de um sistema jogo elaborado previamente. Se na União Soviética a economia era planificada e toda produção era racionalmente planejada por técnicos do governo, o sistema de jogo de Lobanovskyi também estabelecia um método racional com o objetivo de conquistar vitórias e títulos. Assim, o técnico ucraniano de certa forma estabelecia “metas de produção”, tal qual o regime comunista fazia com a economia.

Da mesma forma que o Ajax de Rinus Michels, o Dínamo de Lobanovskyi pressionava o adversário quando este possuía a posse de bola. Embora ambos os times primassem pelo coletivo, o sistema de Michels permitia que os jogadores se deslocassem e trocassem de posições constantemente ao longo da partida. Ainda que na equipe do Dínamo jogadores desempenhassem ações defensivas e ofensivas, suas funções eram extremamente determinadas e as intensas trocas de posições, tais como as existentes no Futebol Total, não ocorriam. Nesse sentido, a individualidade de um jogador como Johan Cruyff era de extrema importância no esquema de jogo holandês. Cruyff não era apenas tecnicamente acima da média, ele também tinha a inteligência de jogo que o possibilitava ocupar espaços que estavam vagos devido ao deslocamento de um companheiro.

Ao contrário do Totaalvoetbal, no sistema de Lobanovskyi o jogador era fundamentalmente parte de um todo, e a qualidade técnica individual fica em segundo plano: “A coisa mais importante no futebol é o que um jogador faz no campo quando ele não está com a posse da bola, e não vice-versa. Assim, quando dizemos que temos um excelente jogador, isso vem do seguinte princípio: 1% de talento e de 99% de trabalho duro”. Dessa forma, a meta principal dos times treinados por Lobanovskyi era o que ele denominou de “universalidade”. Mesmo contando com talentos individuais, com destaque para Oleg Blokhin, essa era a filosofia de jogo do Dínamo de Lobanovskyi.

Ao longo dos anos, muitos críticos apontaram que o sistema elaborado por Lobanovskyi sufocava individualidade, o que subjugava o improviso e a técnica dos jogadores. De fato, ele conscientizava os jogadores que em campo eles não poderiam ver a si mesmos como indivíduos, e que habilidade individual poderia sim ser utilizada, mas dentro de um contexto no sistema tático elaborado pela comissão técnica. Como mencionou Lobanovskyi: “As táticas não são escolhidas para atender aos melhores jogadores. Eles devem se ajustar ao nosso jogo. Todos devem cumprir as exigências do treinador em primeiro lugar, e só então executar o seu domínio individual”. Fato é que com tais pressupostos, Lobanovskyi faria história no Dínamo de Kiev.

Na segunda metade da década de 1970, o Dínamo sob o comando de Lobanovskyi conquistou por três vezes o Campeonato Soviético de Futebol (1974, 1975 e 1977). Também entre as competições soviéticas, venceu a Copa da União Soviética de 1978. No âmbito europeu, no ano de 1975 a equipe formada por Lobanovskyi se tornaria o primeiro time de uma das repúblicas que compunham a URSS a conquistar os títulos da Recopa e Supercopa da UEFA. Devido ao desempenho nas competições europeias, Oleg Blokhin venceu a Ballon d'Or da revista France Football em 1975. Era a prova de que mesmo com a ênfase no coletivo, o sistema de Lobanovskyi permitia que o talento de Blokhin aparecesse.

As conquistas europeias do Dínamo foram realizadas com vitórias categóricas em finais. Na Recopa, os húngaros do Ferencváros foram derrotados por 3 a 0, com dois gols de Onyshchenko e um de Blokhin. Entretanto, a conquista continental mais expressiva na década de 1970 foi na Supercopa da UEFA, em virtude do adversário vencido: o poderoso Bayern de Munique de Franz Beckenbauer. O título foi definido em duas partidas, e a equipe do Dínamo venceu em Munique e em Kiev (1 a 0 fora de casa e 2 a 0 em casa). Todos os gols foram marcados por Blokhin.

Dínamo de Kiev com o troféu da Recopa da UEFA em 1975 (Foto: Miroir du football)
Time do Dínamo campeão da Recopa da UEFA de 1975 (Imagem: Rafael Mateus/VAVEL Brasil)

O sucesso da equipe do Dínamo atingia um nível jamais visto em outro time da URSS. Tal desempenho fez com que Lobanovsky tivesse sua primeira passagem pela seleção da URSS. Ficou no cargo até o encerramento da participação soviética nos Jogos Olímpicos de Montreal em 1976. Sob seu comando, os soviéticos conquistaram a medalha de bronze, após uma vitória por 2 a 0 contra a seleção brasileira, gols de Volodymyr Onishcenko e Leonid Nazarenko.

Em 1977, o Bayern seria mais uma vez superado pelo surpreendente Dínamo de Lobanovskyi. Eram as quartas de final da Copa dos Campeões da Europa da temporada 1976-77, e o primeiro jogo a ser realizado em Munique foi considerado fundamental para a classificação do Dínamo. Segundo Lobanovskyi, o sistema de jogo “foi elaborado de acordo com as ações de ataque, com a neutralização obrigatória dos jogadores do adversário, privando-os de espaço". O objetivo da equipe era um empate em solo alemão, mas o Bayern venceu por 1 a 0.

Na partida realizada em Kiev, Lobanovskyi optou por um modelo de jogo baseado na marcação pressão e que privilegiava a disputa de bola no campo do adversário. O Dínamo também buscava ter uma vantagem numérica de jogadores na disputa de bola em diversas áreas. A equipe de Lobanovskyi venceu por 2 a 0, o que levou à primeira eliminação bávara na competição após o tricampeonato histórico da equipe de Beckenbauer na década de 1970. O Dínamo acabaria sendo eliminado nas semifinais pelo outro grande clube alemão da época: o Borussia Mönchengladbach (1 a 0 em Kiev e 2 a 0 em Gladbach).

No início da década de 1980, o Dínamo sagrou-se campeão soviético por mais duas vezes, em 1980 e 1981. Lobanovskyi ficou no comando da equipe até o ano de 1982, quando assumiu por um breve período a seleção da URSS, após a Copa do Mundo da Espanha. No entanto, tinha dificuldades de aplicar seus métodos na seleção devido ao tempo mais escasso que dispunha para o treinamento. Para que atingisse um nível de excelência, era necessário um trabalho diário constante que as seleções nacionais comumente não possuem. Retornou à equipe de Kiev no ano de 1984, era a sua segunda passagem pelo clube e mais uma vez teria êxito em competições nacionais e internacionais.

Lobanovskyi no comando do Dínamo de Kiev durante a década de 1980 (Foto: Getty)

Lobanovskyi voltaria a comandar Blokhin, já caminhando para o final de carreira. Entretanto, a maior estrela do Dínamo de meados da década de 1980 viria a ser Igor Belanov. Contratado junto ao Chornomorets Odessa, Belanov logo percebeu que seu talento individual teria que servir ao sistema proposto pelo técnico. Sobre o técnico, Belanov disse: "minha relação com Lobanovskyi não era hostil, mas não foi amigável. Foi simplesmente profissional, mas ele fez muito por mim. Ele me convidou para o Dínamo e me convenceu a jogar da maneira que ele queria. Tivemos brigas, mas tínhamos consciência de que estávamos fazendo uma grande coisa".

Como o próprio Belanov reconheceu, mais uma vez sob o comando de Lobanovskyi o Dínamo fez algo importante que resultaria em mais títulos. A equipe sagrou-se bicampeã soviética em 1985 e 1986, além de vencer a Copa da União Soviética em 1985 e 1987. No entanto, foi uma nova conquista numa competição continental que faria com que os olhos do futebol se voltassem mais uma vez à equipe ucraniana: a Recopa da UEFA de 1986. Numa partida fantástica, a equipe não tomou conhecimento do Atlético de Madrid na final: 3 a 0 no Estádio Gerland de Lyon.

Time do Dínamo campeão Recopa da UEFA de 1986 (Imagem: Rafael Mateus/VAVEL Brasil)

O segundo gol marcado por Blokhin demonstrou o nível de sincronia que existia entre os integrantes da equipe do Dínamo. Na esquerda do campo de ataque, e após se livrar da marcação colchonera, Vasyl Rats tocou para Belanov, que rapidamente dominou a bola e sem olhar passou para Vadym Yevtushenko que vinha mais ao centro. Novamente sem olhar, Yevtushenko tocou para Blokhin que vinha pela direita do campo de ataque e, com uma bela finalização, encobriu o goleiro Ubaldo Fillol. Era a combinação perfeita de talentos individuais que estavam organizados de acordo com um sistema tático definido.

Elenco e comissão técnica do Dínamo celebrando a conquista da Recopa de 1986 (Foto: UEFA)

Assim como Blokhin houvera conquistado na década anterior, Belanov recebeu a Ballon d'Or da revista France Football como melhor jogador europeu de 1986. Em 1987, mais uma vez a equipe do Dínamo disputaria a semifinal de Copa dos Campeões da Europa. Com talento e organização tática, os comandados de Lobanovskyi enfrentaram o FC Porto. A equipe portuguesa, que contava com jogadores talentosos como Paulo Futre e Rabah Madjer, venceu os dois jogos por 2 a 1 e colocou fim no sonho ucraniano de vencer a Copa dos Campeões da Europa. Posteriormente, o Porto conquistaria seu primeiro título contra o Bayern de Munique.

Entre os anos de 1986 e 1990, Lobanovskyi comandou simultaneamente as equipes do Dínamo e da URSS. O treinador foi o responsável por conduzir a seleção na disputa da Eurocopa de 1988, seu momento mais importante no comando da seleção soviética. Numa campanha invicta, a União Soviética chegou a final contra a Holanda de Rinus Michels. Na fase de grupos, ambas as seleções estavam no mesmo grupo e os soviéticos haviam vencido a partida por 1 a 0, gol de Vasyl Rats. Na final, os gols de Ruud Gullit e Marco van Basten (este antológico) foram os responsáveis pela conquista da Oranje. Após o vice campeonato europeu, Lobanovskyi também treinou a URSS durante a Copa do Mundo de 1990, mas sem sucesso: foi elimando na primeira fase, num grupo com Argentina, Romênia e Camarões.

Depois da decepcionante campanha na Copa de 1990, Lobanovskyi foi para o Oriente Médio comandar as seleções dos Emirados Árabes Unidos (de 1990 a 1993) e Kuwait (entre 1994 e 1996). Nesse período ocorreu o colapso da União Soviética, e consequentemente a proclamação da independência da Ucrânia em 1991. Atraído pela proposta financeiramente atraente do futebol árabe, Lobanovskyi não obteve êxito no comando duas seleções, sendo demitido em ambos os casos.

No início de 1997, Lobanovskyi retornou ao comando do Dínamo de Kiev. Era a sua terceira passagem pelo clube, naquele momento uma equipe já pertencente à Ucrânia independente. O clube passava por sérias dificuldades, entre elas o fato de ter sido punido pela UEFA devido a uma tentativa de suborno ao árbitro espanhol Antonio Lopez Nieto. O episódio teria ocorrido antes de uma partida em casa contra o Panathinaikos da Grécia. Mesmo com os problemas, Lobanovskyi conseguiu reerguer a equipe. Com o técnico, o Dínamo conquistou o Campeonato Ucraniano cinco vezes consecutivamente, entre 1997 e 2001. Não bastasse isso, mais uma vez Lobanovskyi faria com que o Dínamo tivesse um excelente desempenho em nível europeu.

Na segunda metade da década de 1990, Lobanovskyi transformaria a equipe ucraniana numa das melhores da Europa. Com uma dupla de ataque de altíssima qualidade formada por Andrei Shevchenko e Sergei Rebrov, o Dínamo possuía jogadores como Vitaly Kossovsky, Valentin Belkevich, Vladyslav Vaschuk, Oleksandr Holovko, Andrei Husin e Olexandr Khatskevitch. A equipe formada por Lobanovskyi tinha como uma das características mais importantes a flexibilidade dos seus jogadores. Do ponto de vista tático, todos os jogadores tinham atribuições definidas e poderiam participar das ações defensivas e ofensivas conforme o desenvolvimento da partida. Essa participação intensa dos jogadores no ataque e defesa fazia com que Lobanovskyi tivesse o entendimento de que Shevchenko fosse um jogador mais completo que Ronaldo, justamente pela discplina tática que apresentava na marcação quando estava sem a posse de bola.

Na disputa da UEFA Champions League de 1997-98, o Dínamo demosntrou seu poderio ao derrotar impiedosamente por 4 a 0 o FC Barcelona de Louis van Gaal em pleno Camp Nou. O quarto gol, marcado por Rebrov, é a sintese da ideia de marcação pressão de Lobanovskyi. Após sair da área e impedir que Shevchenko ficasse livre para marcar, Vitor Baía foi pressionado pelo atacante ucraniano. Diante disso, o goleiro da equipe catalã tocou a bola para Albert Ferrer que, cercado por Shevchenko e Rebrov, perdeu o domínio da bola. De primeira, Rebrov chutou para o gol vazio. Apesar da atuação histórica contra o Barcelona, o Dínamo seria eliminado pela Juventus de Turim nas quartas de final.

Na temporada seguinte, a participação do time ucraniano na UEFA Champions League seria ainda melhor. Classificado em primeiro lugar num grupo formado por Arsenal, Lens e Panathinaikos, o Dínamo surpreendeu a todos eliminando o Real Madrid nas quartas de final da competição (1 a 1 em Madrid e 2 a 0 em Kiev). O Dínamo voltaria a enfrentar o Bayern de Munique, depois da histórica quartas de final de 1977, em que eliminou a equipe liderada por Beckenbauer. Dessa vez os bávaros sairiam vitoriosos do confronto, após um empate por 3 a 3 em Kiev e uma vitória por 1 a 0 em Munique.

Entre 2000 e 2001, Lobanovsky treinou concomitantemente o Dínamo e a seleção ucraniana. Ele acabou sendo demitido após perder para a Alemanha no playoff que classificaria para a Copa do Mundo de 2002 (empate de 1 a 1 em Kiev e derrota por 4 a 1 em Dortmund). Pouco tempo depois, ele sofreria um acidente vascular cerebral, no dia 7 de maio de 2002. Em 13 de maio, durante uma cirurgia no cérebro, o grande técnico ucraniano faleceu devido às complicações sofridas pelo AVC. Diversas homenagens foram feitas, entre as quais um minuto de silêncio na final entre Bayer Leverkusen e Real Madrid da UEFA Champions League de 2002, além do Dínamo ter rebatizado o seu estádio, que hoje se chama Lobanovskyi Dynamo. Depois de um ano da morte, uma estátua foi inaugurada em frente ao local. Para os torcedores do Dínamo, o nome técnico se tornou uma lenda.

Estátua de Lobanovskyi em Kiev (Foto: Comtourist)

O legado de Lobanovskyi não se resume ao futebol ucraniano. Ainda que comumente Charles Reep seja considerado o pioneiro na análise estatística e de performance no futebol, o papel de Lobanovskyi tem um caráter singular. Seu grande mérito foi a elaboração de um método sistemático de gravação e análise de partidas que são mais avançadas que os estudos de Reep. Cada aspecto da partida de futebol era discriminado e metas estabelecidas de acordo com as propostas de jogo efetuadas pelo técnico.

Ainda que o Futebol Científico já fizesse parte das ideias acerca do jogo desde a seleção soviética de Gavrill Kachalin, o procedimento metodológico de Lobanovskyi elevou essa filosofia de jogo a outro patamar. Atualmente, é comum o uso da tecnologia como um recurso no estudo e na preparação de equipes de futebol, comissões técnicas e até mesmo a imprensa se utilizam disso. O fato de Lobanovskyi fazer uso da estatística e tecnologia em décadas passadas é o que o torna um precursor.

Levantamento estatístico da equipe de Lobanovskyi (Imagem: Jonathan Wilson)
Exemplo de um mapa de movimentação para a análise futebolística. O uso da tecnologia é algo recorrente na imprensa atual (Imagem: ESPN Brasil)

Em contrapartida, críticos podem questionar a supressão do indivíduo numa filosofia de jogo que enfatiza tanto o aspecto coletivo. De fato, habilidades individuais frequentemente têm papel fundamental na decisão de partidas. Nesse sentido, a derrota da URSS na final da Eurocopa para o talento de van Basten e Gullit talvez seja o exemplo mais evidente. No entanto, o método de Lobanovskyi não impediu que os talentos de Blokhin, Belanov e Shevchenko se sobressaíssem. No ano de 2003, num ato de gratidão ao seu mestre, o craque Shevchenko foi até a estátua de Lobanovskyi em Kiev com o troféu da UEFA Champions League, que ele havia conquistado com o AC Milan.

Na atualidade, com os rendimentos salariais dos jogadores de alto nível, e a constante exposição que estes possuem na mídia, fazê-los abdicar do ego em prol do trabalho coletivo é um desafio que se apresenta. Em sua terceira passagem pelo Dínamo, Lobanovskyi já havia detectado as dificuldades dos novos tempos pós-URSS: "Anteriormente, uma palavra, um olhar, era o suficiente para fazer valer a sua autoridade e explicar o que ele queria. Talvez fosse típico do sistema comunista, mas agora os jogadores têm uma maior liberdade e individualidade”, disse Serhiy Polkhovskyi, vice-presidente do Dínamo, no ínicio dos anos 2000.

Nos últimos anos, as fracas campanhas do Dínamo de Kiev em competições europeias colocam em evidência a discussão a respeito da possível perda da identidade futebolística das equipes do leste europeu. Com o advento da contratação de jogadores estrangeiros, esse é um questionamento recorrente. Sem dúvida, a aquisição de jogadores sulamericanos e africanos contribuem para elevar a técnica e a criatividade das equipes que antes integravam a URSS. É provável que o exemplo mais evidente disso seja o Shakhtar Donetsk, que obteve êxito na Copa da UEFA de 2009 contando com os jogadores brasileiros Fernandinho, Ilsinho, Jadson, Willian e Luiz Adriano. Entretanto, isso não impede que sejam mantidos ideais e valores intrísecos daquela região da Europa, e que historicamente trouxeram reconhecida competitividade.

É possível concluir que conciliar as habilidades individuais ao trabalho coletivo seja a resposta mais plausível para que uma equipe de futebol esteja apta a grandes conquistas. Diante disso, o trabalho realizado sob o comando de Lobanovskyi criou uma identidade no futebol ucraniano, que se refletiria na própria seleção da URSS. A filosofia empregada nas equipes vitoriosas do Dínamo, fez com que Lobanovskyi se tornasse um ícone na história do futebol da Ucrânia e um dos grandes treinadores do século XX. Ele formulou uma sistema que inseriu de forma única a ciência, o raciocínio lógico e a tecnologia nos campos, o que auxiliou na fundamentação das bases conceituais do Futebol Científico aplicado no leste europeu durante o século XX.

Protestos contra o ex-presidente Viktor Yanukovych com a foto do lendário técnico ucraniano ao fundo (Foto: AP)