Das paixões escondidas às canchas do interior: as dificuldades de chegar aos 100 anos

No extremo sul do Brasil, o Grêmio Atlético Farroupilha, detentor do maior título gaúcho da história, busca sobreviver contra as barreiras da atualidade

Das paixões escondidas às canchas do interior: as dificuldades de chegar aos 100 anos
Trem, torcedor-símbolo do Tricolor pelotense. (Foto: Ediane Oliveira / G.A. Farroupilha)
henriquekonig
Por Henrique König
Título mais importante do RS não pertence a Grêmio ou Inter. (Foto: Henrique König/VAVEL Brasil)

De detentor da principal conquista da história do futebol gaúcho ao perigo de não completar o centenário dela de portas abertas. No extremo sul do país, o Grêmio Atlético Farroupilha, da cidade de Pelotas, resguarda, através das cores e da história, resquícios do passado do Rio Grande do Sul e do futebol distante dos holofotes e das arenas modernas. Atualmente, o Tricolor disputa o abismo da terceira e última divisão do RS.

Pelotas é o terceiro município mais populoso do estado mais meridional do Brasil. Ao sul do sul, fica a 258 quilômetros da capital Porto Alegre, estando mais próximo da fronteira com o Uruguai e com o Oceano Atlântico. Os clubes com maior apelo são o rubro-negro Brasil e o áureo-cerúleo Pelotas. Porém, na Avenida Duque de Caxias, no maior bairro da cidade, o Fragata, reside o tricolor Farroupilha, de 89 anos, com sua fachada de predomínio verde, em meio ao acúmulo de revendas de veículos e pequenos comércios em volta.

O panorama durante a semana pode enganar. Enquanto no interior dos antigos portões carentes de pintura, a calmaria reina, do lado de fora encontra-se o trânsito feroz do Fragata, além de vários carros estacionados. Estes são apenas produtos da revenda vizinha.

Um estádio intocável às lufadas da modernidade

Foto: Henrique König / VAVEL Brasil
Pavilhão social ao lado das cabines de imprensa vem acomodando o restrito público dos jogos
(Foto: Henrique König / VAVEL Brasil)

A sede do Farroupilha é o antigo e acanhado estádio General Nicolau Fico, localizado no chamado complexo esportivo General Plácido Nogueira. As origens militares do clube pelotense ficam gritantes através dos nomes dos homenageados. Uma entrada lateral dá acesso ao pequeno centro administrativo, recheado de troféus amistosos, mas também com conquistas de campeão do interior gaúcho (1959, 1961 e 1967) e da cidade de Pelotas.

A distância entre o gramado do Nicolau Fico, o banco de reservas e o público é muito estreita. A área técnica chega a ser marcada sobre o concreto, para não limitar ainda mais aos treinadores. O estádio até possui uma raridade a nível de interior: apresenta arquibancadas atrás das duas goleiras, além de tribunas nas duas laterais. De forma decrescente, entretanto, o Farroupilha não demonstra condições de preenchê-las com seu público local. A escassez de recursos como participante da terceira divisão estadual transforma o ambiente em um preocupante deserto motivacional.

80 anos do maior título gaúcho da história

Em 2015, o Grêmio Atlético completou 80 anos de sua principal conquista: o campeonato estadual de 1935. Apesar da distante época, trata-se da mais importante taça do futebol referente ao território do Rio Grande do Sul. Isto porque o título de campeão gaúcho de 35 foi combinado como válido por 100 anos, pois a temporada da disputa marcava o centenário da Revolução Farroupilha.

Representante da chamada zona litoral, apesar de Pelotas não ser banhada pelo oceano, o Grêmio Atlético 9º Regimento foi o vencedor da região. Bateu o extinto Rio Branco de Santa Vitória do Palmar e o São Paulo de Rio Grande nas preliminares regionais. As disputas pelo título máximo foram todas em Porto Alegre.

As dificuldades à época eram condizentes não apenas com as acirradas peleias dentro de campo. Também era necessário percorrer a distância entre Pelotas e Porto Alegre de navio. Na cidade-sede, a equipe militar, vice em 1934, mostrou sua disposição pela conquista inédita. Venceu o Novo Hamburgo na semifinal e postulou ao título diante do Grêmio Porto-Alegrense. Após perder o primeiro jogo da finalíssima, o 9º Batalhão conseguiu a virada na melhor de três e sagrou-se campeão farroupilha em 26 de outubro de 1935.

Por conta de um decreto nacional do então presidente Getúlio Vargas, o 9º Regimento desvinculou o nome do clube ao exército em 1941, passando a ser chamado de Grêmio Atlético Farroupilha. A alcunha mantida até hoje é em homenagem ao título no centenário da Revolução homônima.

Arquibancada ao fundo recorda o título de 1935
(Foto: Henrique König)

Os raros voos de Cardeal

Na equipe pelotense, reza a lenda, havia um dos maiores jogadores de todos os tempos. Sezefredo Ernesto da Costa era conhecido como Cardeal, pela preferência por utilizar um gorro vermelho que o assemelhava ao pássaro. Nascido em Santa Vitória, assim como outros atletas do time militar, foi campeão do título válido por 100 anos.

O folclore gaúcho conta que Cardeal não conseguia correr satisfatoriamente, mas havia recebido o dom de levar a bola onde queria, com dribles estonteantes e chutes de precisão cirúrgica. Ele encantou uruguaios com a camisa do Nacional e cariocas com a do Fluminense. Também obteve convocações aos selecionados gaúcho e brasileiro. Por conta de uma tuberculose, Cardeal despediu-se do mundo em 1949, após breves 36 anos, em Montevidéu.

Ao time campeão de 1935, um espaço está reservado no Cemitério Ecumênico São Francisco de Paula, na Avenida Duque de Caxias, próximo ao estádio do Farroupilha. Exatamente por se encontrar a poucas quadras do local de repouso aos falecidos, o tricolor recebe o apelido de Fantasma do Fragata. O túmulo coletivo é em área nobre, próximo das homenagens a barões e coronéis que dão nome a algumas ruas de Pelotas.

Escondido entre construções maiores está o memorial dedicado aos campeões do principal Gauchão da história. Na superfície do jazido, foram gravados os nomes do goleiro ao centroavante, onde abaixo foram enterrados um a um deles, conforme o tempo foi ceifando suas passagens. O símbolo do clube e os nomes já não reluzem tanto e é preciso esforçar a vista para identificar a escalação.

Túmulo coletivo aos campeões, localizado no Cemitério São Francisco de Paula (Foto: Henrique König / VAVEL Brasil)
Pouco legível a escritura aos campeões estaduais de 1935. (Foto: Henrique König)

Até que a morte os separe: O amor incondicional da torcida

Na ida ao cemitério, tímido ponto de encontro entre a história do futebol gaúcho e o presente, quem me acompanhou foi um dos torcedores mais fanáticos do Farroupilha, Cássio Kurz. Representante entre os mais novos aficionados pelo Fantasma, aos 30 e poucos anos, não é difícil encontrá-lo entre a comunidade da Guabiroba, onde mora no Fragata, e o estádio Nicolau Fico. “É minha segunda casa”, afirma ele.

Cássio relembra que o primeiro jogo que assistiu foi contra o extinto Inter de Arroio Grande, pela terceira divisão de 1995. Começou a frequentar o estádio em função dos amigos residentes na Guabiroba. A identificação maior criada com o tricolor foi por sentir-se representado pelo clube distante do Centro de Pelotas e mais fixado no bairro.

Aproximado pela paixão, ele auxilia o Fantasma dentro de campo. Já foi de gandula a carregador da maca. “É tentar ajudar o clube com o pouco que podemos contribuir. Todo o bairro Fragata que é Farrapo poderia contribuir também.

Cássio costuma acompanhar a todos os noticiários esportivos. Conhece todos da imprensa e todos da imprensa o conhecem. “Ele é um amante à moda antiga. Não sei se do tipo que ainda manda flores, mas que se doa pelo clube como se o próprio clube fosse um membro da família. Cássio Kurz é um dos pilares que mantém o Farroupilha em pé, porque ele vai além das formas administrativas. A forma sentimental é a mais linda de se dedicar a algo. Ele não é um dos famosos heróis de 35, mas não é menos importante. É um herói da atualidade. Alguém que batalha por algo que ama da forma mais bonita: o seu Tricolor”, comenta Leandro Lopes, do Diário Popular, o maior jornal de Pelotas.

Por fim, Cássio enfatiza que o clube fragatense tem um bom patrimônio e precisa de planejamento. Necessita urgentemente deixar a terceira divisão.

Cassio Kurz (Foto: Henrique König)
Jorge Donini Foto: Henrique König)

Dois simpáticos torcedores acompanham Cássio nas jornadas pelo Fantasma. Passam-se os anos e eles seguem em fidelidade. Jorge Donini, aos 62 anos, é agricultor e mora no interior. Mesmo assim, ele se desloca para ver os jogos. Recordista, possui mais de 23 camisas do tricolor fragatense e apresenta-se à missão de torcer sempre bem trajado.

Costuma carregar as camisas, variadas de patrocinadores, apoiadores, números e fornecedores esportivos, conforme as épocas. Em sua página em rede social, há fotos com os mantos em Bento Gonçalves, na serra gaúcha, no Chuí, na fronteira com o Uruguai e em outros lugares pelo interior. Os fornecedores mudam e  o que permanece mesmo são os torcedores, por exemplo, ele e Cássio Kurz.

Sou só Farroupilha”, afirma Donini, raridade entre os ocupantes das tribunas, muitas vezes apenas simpatizantes do clube e torcedores “de verdade” da dupla Bra-Pel ou Gre-Nal.

O segundo, aqui apontado, é um dos maiores torcedores do país. Seu Guilherme é conhecido como Trem desde quando era jovem e assim mantém o apelido. E, exatamente como uma locomotiva, ninguém o para ou desmotiva. Ele é filho de um campeão de 35, o Caminhãozinho. Desde a infância, a paixão pelo Farroupilha só aumentou.

Trem seguidamente vem da cidade vizinha, Rio Grande, para conferir os jogos. Longe de ser apenas um mero espectador, ele brada com uma voz inconfundível e de força descomunal para sua idade. “Meu Farroupilha, meu Farroupilha, meu time do coração” é o canto mais entoado por ele, às vezes solitário com sua fé, suas vestimentas vermelhas e sua bandeira tricolor.

O torcedor-símbolo do Fantasma não xinga os adversários e também não é xingado. Ao contrário, costuma ser aplaudido e reverenciado pelas canchas por onde passa, tamanho é seu amor e carinho pelo clube, ganhando respeito e admiração dos times oponentes.

Trem com sua bandeira em dia de jogo. (Foto: Ediane Oliveira / G.A. Farroupilha)

Entre o passado e o futuro, a corda bamba do Farroupilha

São décadas que dariam ótimas histórias, como lenda, mito ou, de repente, poesia. O coronel Ewaldo Poeta, aos 88 anos, dedicou mais de 40 à condição de presidente do Grêmio Atlético Farroupilha. Presente direto desde a década de 1970, ele nunca se afastou do cargo. Recentemente, no mandato de 2014 de Reginaldo Bacci, Poeta manteve uma determinada distância e, para surpresa ou não, muitos conselheiros do clube também arredaram pé. O Farroupilha sofreu por contar com poucas pessoas no período, nas tentativas do investidor advogado e presidente Bacci. A influência do dirigente Poeta, mais uma vez provada, é gigantesca tratando-se do clube do bairro Fragata.

A análise histórica de sua participação frente ao clube divide opiniões. Não se sabe se o Farroupilha teria fechado as portas sem seus esforços e nem se, nas mãos de outros dirigentes, poderia ter crescido e se mantido mais forte ao longo dos últimos anos.

Em eleição de dezembro de 2015, o jovem Tiago Guidotti, de 33 anos, assumiu a presidência. O novo responsável maior do clube é aliado das ideias de Ewaldo Poeta, o que pode significar uma reatada nas uniões entre pessoas interessadas no Tricolor. A saúde financeira do Fantasma vai de mal à péssima e, pensando nisto, Guidotti lançou uma campanha para arrecadar dinheiro ao Farroupilha. A meta é conseguir 30 mil reais em dois meses através da ferramenta virtual. Quem sabe, dessa vez, o Farrapo consiga alinhar o passo rumo ao futuro e arrumar maneiras de sobreviver no mar de dificuldades aos escudos do interior.

Um dos últimos ídolos: Vagson Ribeiro

Nascido e criado no bairro Fragata, o ex-jogador do Fantasma, Vagson Ribeiro atualmente é dono de uma loja de tecidos na Avenida Duque de Caxias. Com passagem por grandes centros, como Grêmio, Corinthians e Criciúma, ele comenta sobre sua relação forte com o clube, no qual cresceu assistindo a jogos, atuou, recebeu homenagens ao encerrar a carreira e chegou a ser convidado para técnico em 2011, mas a equipe não entrou na disputa da segunda divisão da época.

Tenho um carinho enorme pelo clube, até porque sou nascido e criado em Pelotas, a uma quadra do Farroupilha, onde eu vi grandes jogos e jogadores. Era sócio do clube, das piscinas desde 1985”, recorda Vagson. Ele iniciou a carreira profissional em 1994 e, quando voltou à cidade, conseguiu a conquista do acesso ao Fantasma para primeira divisão gaúcha em 2004. No clube, foram mais de 150 jogos e a oportunidade de receber o prêmio Multiesporte como atleta do fragatense.

Vagson, ídolo no Farroupilha (Foto: Arquivo Pessoal)

A identificação com o clube, independente de ele estar jogando ou não, para mim, será eterna. É um clube que eu adotei, que eu amo. Tenho alguns familiares que vão aos jogos até hoje. Para mim, é uma satisfação enorme ser torcedor do Grêmio Atlético Farroupilha.

Segundo Vagson, a questão financeira é o que mais preocupa para sequenciar a história do Fantasma. Problemas de vaidade política, comuns para muitas agremiações, e a falta de apoio são entraves, burocracias nas administrações recentes. O comando atual da Federação Gaúcha também recebe as críticas pela forma como vem tratando o futebol do interior do estado.

As competições, principalmente do segundo semestre, perdem um pouco do valor. Torna muito dificultoso para os clubes do interior. O Brasil, mesmo na Série B nacional, já enfrenta imensas dificuldades. Então, tu imaginas as dificuldades do Farroupilha. São poucas pessoas que ajudam o clube.”

O cenário é preocupante também no baixo número de torcedores que costumam ir ao estádio Nicolau Fico. Partes da arquibancada do complexo não estão liberadas e o pavilhão social vem abrigando não mais do que 300 pessoas por partida.

Nós perdemos muitos torcedores que deixaram de acompanhar ao clube, de pagar, de ser sócio, pela desorganização que estava. Mas também é gostoso de ver na rua torcedores ainda com a camisa, que vão aos jogos. Mas o que a gente pede é que o bairro Fragata, que o torcedor volte forte para ajudar e incentivar, porque o Farroupilha precisa dos poucos torcedores que tem, e, de certa forma, resgatar os que ficaram para trás.

Por fim, Vagson relembra duas experiências marcantes. Ele esteve presente no último acesso à primeira divisão gaúcha, quando o Fantasma venceu o clássico Bra-Far e ascendeu à elite: “A melhor experiência foi o jogo dramático pelo acesso contra o Brasil, em 2004, quando a gente precisava da vitória e, graças a Deus, conseguimos retornar à primeira divisão após muitos anos. Todos se doaram ao extremo. Tenho título de campeão paulista, acessos pela Ulbra, mas a satisfação de levar o Farroupilha à primeira divisão foi o momento mais marcante”.

O ex-jogador também recorda o descenso em 2006, quando confessou ter sido um período difícil até para sair de casa. O Farrapo se despediu da elite naquele ano e nunca mais disputou-a. Após essa queda, houve ainda o rebaixamento da segunda para terceira, em 2013. Desde então, a luta do clube para reerguer-se do abismo é travada, principalmente, contra o Grêmio Esportivo Bagé e o Guarany de Bagé, outras duas tradicionais equipes amaldiçoadas com a última divisão gaúcha. O panorama é combatente do otimismo: somente um clube sobe por temporada. E mesmo que tramite na Federação a ideia de acabar com a terceira e reconduzir esses clubes à divisão de acesso, quem os garante um futuro? Como a humilde oração que pede o pão de cada dia, o pedaço de sonho é honrar, de portas abertas, a conquista maior, a válida por 100 anos.

Grande público em clássico entre Farroupilha e Pelotas, em 2013.
Estádio nunca mais recebeu tamanho volume de torcedores.
(Foto: Henrique König / VAVEL Brasil)