*Matéria produzida para a Universidade Federal do Rio de Janeiro em conjunto com: Isabela Izidro, Kariny Leal e Maria Eugênia.

Vandalismo, preconceito, brigas, depredações do bem público, mortes. Há muitos anos, as torcidas de futebol têm feito muito mais do que simplesmente torcer. E para comprovar essa tese, não é preciso ir longe. O Brasil é o país que ocupa o primeiro lugar nas estatísticas de mortes comprovadas de torcedores, causadas por conflitos entre grupos violentos. De 1999 até 2016, foram 176 óbitos, média de quase 10 por ano. O auge foi em 2013, período em que o país atingiu 30 mortes, com uma média de 2,5 ao mês. A guerra entre facções organizadas é apontada como principal culpada por esse número alarmante, já que quase 160 dessas mortes tiveram a participação de seus integrantes.

O mercado de transações se abre e os jogadores deixam suas equipes de origem. Alguns se tornam ídolos, ganham uma pintura emoldurada nos museus ou um grito de guerra com seu nome bradado. Outros passam batido, viram memória a longo prazo até caírem no esquecimento. O torcedor, por sua vez, se eterniza, nasce e morre fiel a um único escudo, doa seu tempo às tardes infinitas em frente à televisão, chora noites em claro por causa de um rebaixamento ou um título perdido e gasta seu salário do mês comprando ingressos. Vive e é tratado pela mídia como o décimo segundo jogador em campo, o maior patrimônio da história de um clube, mas que, devido à ação de uma minoria, tem transformado o esporte em um verdadeiro campo de guerra

Estudos e estatísticas sobre a violência

São inúmeras as formas de violência que afetam o país de maneira geral e que, em muitos casos, acabam por se repetir nas arquibancadas. No fim, o futebol tem se mostrado, cada dia mais, um retrato de sua própria sociedade. Os crimes mais comuns são agressão, mutilação, morte e depredação de patrimônio. Além da violência física, também são habituais diversas formas de violência moral e psicológica, a maioria delas originadas de machismo, preconceito racial e LGBT. O crime de racismo, em 2015, teve 41 ocorrências registradas nos esportes, sendo 37 no futebol e, destas, nove aconteceram no Rio Grande do Sul.

Segundo o sociólogo Maurício Murad, que estuda a violência no futebol há 26 anos, muitos membros de facções criminosas acabam se associando às torcidas organizadas por verem ali um ambiente propício para a comercialização de drogas. Na maioria das vezes, são esses os indivíduos que iniciam as confusões. “É por isso que é tão comum vermos brigas até dentro da mesma torcida. Ninguém ali está brigando por futebol. Trata-se de uma briga entre facções. Muitos desses ‘torcedores’ se afiliam a mais de uma torcida, estão afiliados ao São Paulo, Corinthians e Palmeiras ao mesmo tempo, por exemplo”, explica.

O real problema mora na impunidade. Em 2014 e 2015, apenas 3% de todos os crimes cometidos no futebol, dentro e fora dos estádios, foram levados até as últimas consequências. No mesmo período, apenas 5% dos crimes em geral foram punidos até as últimas consequências. No trânsito, apenas 8% dos delitos foram levados até as últimas consequências. Nas lutas históricas, seculares, da posse da terra entre lavradores e latifundiários, somente 3% dos crimes foram apurados até o fim. “Falamos do futebol, mas na realidade estamos falando da impunidade brasileira", destaca Murad.

O problema não se limita apenas aos estados mais ricos do país. Sergipe, Minas Gerais, Ceará, Paraíba, Goiás e Fortaleza também protagonizam inúmeras cenas de violência entre torcidas. Quase duas centenas de famílias já choraram a perda de seus entes queridos. Um número que parece exagerado para quem assiste apenas ao noticiário de Rio e São Paulo, mas compatível à selvageria que ocorre em todas as regiões do país.

Murad enxerga de maneira negativa a insistência de algumas entidades em determinar torcida única nos jogos “Não têm que acabar com as torcidas organizadas. Quando pegam um senador, um deputado – e pegam todo dia – cometendo um crime, ninguém pensa em acabar com o Congresso. Quando são punidos, são individualmente. Por que, então, quando pegam um caso de um torcedor querem acabar com as organizadas sendo que comprovadamente os criminosos são uma minoria? É um preconceito com as classes populares?” questiona. Ele também ressalta que a Constituição Brasileira garante, em seu Artigo 5º, o direito à organização popular pacífica.

O outro lado da moeda

Foto: Letícia Sansão/VAVEL Brasil
Foto: Letícia Sansão/VAVEL Brasil

Festa, cantos de apoio e papéis picados, em pouco tempo e sem qualquer explicação, são capazes de se tornar bombas de efeito moral, pedaços de madeira e briga generalizada. Não há dúvidas de que as torcidas organizadas tomam conta do futebol brasileiro e são essenciais na campanha de qualquer equipe. No entanto, o problema começa quando a paixão pelo clube deixa de ser o elemento principal e muitos dos integrantes acabam esquecendo de sua real função nas arquibancadas.

A maioria dos amantes de futebol acompanha seus clubes desde a infância e alimenta uma admiração não só pelo time, mas também pela torcida, que em muitos casos acaba definindo o rumo do jogo, com toda sua festa e apoio incondicional. E por trás de todo brilho nas arquibancadas, há um grupo especial que prepara todo o show antes da execução final. Esse é o caso de R., que desde que se filiou à Young Flu (torcida organizada do Fluminense) há sete anos, viu sua vida e rotina de jogos mudarem por completo. “Torcedor comum sai de casa, vai para o jogo e volta. Já nós, torcedores organizados, saímos de casa até sete horas antes para preparar o estádio com bandeiras, faixas e papéis picados”, explica. Espetáculo à parte, a rivalidade entre essas torcidas transformou os estádios em verdadeiros campos de guerra decorados.

Até mesmo dentro dos próprios clubes é de costume haver rivalidade entre as principais organizações. A busca pela atenção dos dirigentes e da mídia faz com que a disputa de egos entre elas cresça. Uma passa a querer ser maior que a outra, uma quer puxar mais cantos que a outra e no fim, uma relação que deveria ser de parceria acaba tornando-se uma competição. Rafael Mois Kastrup, presidente da torcida organizada Loucos pelo Botafogo, explica:

“Existem várias torcidas com ideologias diferentes. Quando a rivalidade é sadia, é bom para o clube. São grupos que se equivalem, cada um vai inovando. Mas quando se trata de briga por dinheiro, status e poder, isso afasta as famílias dos estádios”.

Por meio dessas disputas acirradas que nascem as novas torcidas. Para Rafael, a falta de controle emocional é geralmente o fator agravante em brigas entre grupos do mesmo time. “A paixão do torcedor, muitas vezes, o cega diante de situações comuns. Para piorar, existe ainda o destempero após uma derrota ou o descontrole causado pela bebida. Fora do ambiente esportivo, o torcedor pode ser um advogado, ou um dentista. Não importa”, afirma.

Se no próprio time há brigas, fora dele a situação é ainda mais agravante. R. tem a vivência e costume de participar de brigas com a Young, mas não se orgulha.

“Toda torcida tem aquela rapaziada que gosta de um confronto. Quando tem um clássico com muita rivalidade, juntamos uma galera boa e vamos em algum bairro para dar um ataque neles. Não existem motivações específicas, muitas vezes é apenas ódio gratuito e provocação", conta e completa explicando como funcionou um desses confrontos extracampo: “Nos concentramos às 7h30 da manhã no Centro de Caxias com mais ou menos 35/40 pessoas. Fomos até a concentração da “Força Jovem do Vasco”, eles sempre são muito maiores do que a gente, praticamente o dobro. Mas pegamos eles desprevenidos. Os carros com as madeiras e bombas foram na frente e fomos andando. Quando chegamos ao ponto de concentração deles, eles deviam estar em 50 pessoas. O "pau quebrou". Conseguimos recuá-los, com muita bomba. Tudo durou cerca de 10 minutos, até que chegou a PM dando tiro para o alto. Nisso recuamos e corremos, pois já havíamos vencido a guerra".

Com as constantes brigas também fora do estado, fez-se necessária a criação de alianças entre organizações de equipes diferentes. Se um time joga fora do seu local de origem, a torcida aliada vai ajudar a defende-lo nos confrontos aos arredores do estádio. Na formação dessas alianças, não há mistério. Os presidentes das organizadas conversam até chegarem a um consenso. Dentro do universo das torcidas, ter aliados fora do estado é atestar o crescimento e a visibilidade da organização. Mas nem sempre são rosas. “Alianças de algumas torcidas são complicadas. A ‘Fúria Jovem’ do Botafogo é aliada da “Gaviões da Fiel” (Corinthians). A ‘Força Jovem’ do Vasco é aliada da ‘Mancha Verde’ do Palmeiras. No entanto, a ‘Mancha’ e a ‘Gaviões’ são inimigos mortais, e a ‘Fúria Jovem’ e a ‘Força Jovem’ são amigas. Então é tipo assim, a amiga da minha inimiga é minha amiga”, explicou R.

Para driblar esse tipo de violência, o Estado tenta implantar os jogos de torcida única. No entanto, entre os mais diversos tipos de torcedores, difícil é encontrar um que ache o método efetivo. “Não vai adiantar nada, as brigas ocorrem distante dos estádios. Suponhamos que tenha um ‘Fla x Flu’ de torcida única, só com a torcida do Flamengo podendo chegar ao estádio. Não adiantaria. Com certeza estaríamos nos concentrando em algum bairro para confrontá-los, ou armar emboscada”, opinou J., um torcedor tricolor que também preferiu não se identificar.

De acordo com pesquisas, algumas ações podem ajudar no plano imediato, como promoção de ingressos para famílias, porque a presença de idosos, casais e crianças diminuem o índice de violência, o aumento de policiamento e fiscalização na entrada dos estádios. “É um conjunto de ações integradas que ensina valores para além do futebol, ensina que adversário não é inimigo, competição não é agressão e concorrência não é violência” finaliza Murad.