Nesta sexta-feira (19), um dos acontecimentos mais emblemáticos da história da Fórmula 1 faz aniversário. Há exatos 10 anos, no dia 19 de junho de 2005, os pilotos partiram para o Grande Prêmio dos Estados Unidos, em Indianápolis, sem imaginarem que aquela seria a corrida com menos carros no grid de largada em toda a história da categoria.

Apesar de o ápice ter sido atingido no domingo, toda a história começou na sexta-feira, após o acidente de Ralf Schumacher, da Toyota, que forçou análises mais profundas e mostrou sérios problemas de pressão nos pneus escolhidos pela Michelin. Na época, a Fórmula 1 tinha dois fornecedores de pneus, a francesa Michelin e a japonesa Bridgestone. Nenhuma solução foi encontrada, e com isso, todos os carros equipados com pneus Michelin foram para os boxes após a volta de apresentação: simplesmente 14 dos 20 pilotos daquele grid abandonaram a corrida antes mesmo das luzes vermelhas serem acesas.

Naquela prova, participaram as Ferraris de Michael Schumacher e Rubens Barrichello, as Jordans de Tiago Monteiro e Narain Karthikeyan, e as Minardis de Christijan Albers e Patrick Friesacher. Na ocasião, a Ferrari, que vinha de cinco títulos seguidos de pilotos (ambos com Schumacher) e seis de construtores, fazia uma temporada mediana, mas como teve como rivais naquele GP a Jordan e a Minardi, as equipes mais fracas do grid, passeou de forma tranquila no Indianapolis Motor Speedway.

Entenda o caso

Tudo começou na sexta-feira, 17 de março de 2005. Durante o segundo treino livre, o alemão Ralf Schumacher bateu forte com sua Toyota na curva 13 (o circuito misto de Indianápolis tinha como característica marcante usar a curva 1 da pista oval que sedia provas da IndyCar e da NASCAR como a última do circuito misto, a curva 13), mesmo ponto em que havia sofrido um grave acidente um ano antes, durante a corrida, quando era piloto da Williams, e foi obrigado a ficar pouco mais de três meses (seis corridas) fora. Como a Williams em 2004 e a Toyota em 2005 eram abastecidas por pneus da Michelin, os responsáveis da fornecedora francesa pediram uma análise mais completa. O resultado foi chocante.

A perícia mais aprofundada mostrou que, ao passarem pela curva 13, os pneus não aguentavam a forte pressão sofrida pela pista e pela aceleração completa do carro, e poderiam a qualquer momento sucumbir e causar algum acidente mais grave na corrida (em 2005 não era permitida a troca de pneus, apenas reabastecimento, exceto em caso de furo), como com Ralf Schumacher, que não pôde participar daquela corrida, dando lugar ao brasileiro Ricardo Zonta. Quando a Michelin veio a público e revelou a história, começou o festival de possíveis soluções, para evitar um boicote à corrida ou um grid vazio (na época, das 10 equipes, 7 – McLaren, Renault, Toyota, BAR, Sauber, Red Bull e Williams – usavam Michelin, e apenas Ferrari, Jordan e Minardi corriam com os pneus Bridgestone).

Mesmo com todos os problemas, e sem saberem se a corrida aconteceria, os pilotos foram para a classificação no sábado, onde tivemos mais surpresas: Jarno Trulli marcou a primeira pole-position da Toyota na F1, com 1min10s625. Kimi Räikkönen (McLaren), Jenson Button (BAR), Giancarlo Fisichella (Renault) e Michael Schumacher (Ferrari) fecharam o top-five. Entre os brasileiros, Rubens Barrichello (Ferrari) foi o 7º, Felipe Massa (Sauber) foi o 10º, e Ricardo Zonta (Toyota) foi o 13º.

Enquanto isso continuava a guerra de bastidores, e a incerteza sobre a realização do GP. A Michelin sugeriu inicialmente que fossem mandadas remessas novas de pneus emergenciais, direto da sede da fabricante em Clermont-Ferrand, na França, parecidos com os que foram usados semanas antes no GP da Espanha, mas além de as unidades também apresentarem risco, ia de encontro à regra da Fórmula 1 naquele ano, que não permitia mudanças nos compostos entre a classificação do sábado e a corrida do domingo.

Outra proposta bastante discutida era que os pilotos que dirigissem carros com pneus Michelin reduzissem a velocidade ao se aproximarem da curva 13, evitando possíveis batidas fortes no muro, mas a ideia foi vetada. Logo depois, viria a ideia mais concreta: uma chicane seria construída no meio da curva 13 para reduzir a velocidade dos bólidos, mas também houve o veto. Segundo a FIA (Federação Internacional do Automobilismo), além de não ter sido aprovada de forma unânime pelas equipes, a decisão prejudicaria de forma injusta a Bridgestone, que havia feito todo o trabalho correto, de acordo com a entidade.

Muitos fãs protestaram durante a corrida, o autódromo fez sinal de negativo e chegou-se a pedir o dinheiro de volta (Foto: Getty Images)

Apesar de a decisão não ter passado na votação no sábado, no domingo, o dia da corrida, 19 de junho de 2005, veio a última cartada. Paul Stoddart, chefe da Minardi (uma das três equipes que usava pneus Bridgestone) convocou uma reunião de emergência para intensificar a ideia da chicane. Todas as equipes precisavam votar a favor para passar a ideia do papel para a prática. Com a mudança de decisão de última hora da Jordan (outra que usava pneus Bridgestone), todas as equipes que estavam ali acabaram concordando. Porém, nem todas estavam ali.

A Ferrari (terceira e última com pneus Bridgestone), liderada pelo seu chefe e atual presidente da FIA, Jean Todt, nem ao menos compareceu à reunião. Ainda assim, Todt declarou que, caso tivesse votado, a resposta seria ‘não’, para não prejudicar o trabalho da Bridgestone. O presidente da FIA na época, Max Mosley, chegou a dizer que aquele GP e qualquer outra corrida que fosse realizada pela FIA nos Estados Unidos estariam seriamente ameaçados caso a chicane fosse construída. Com isso, chegou a se cogitar nos bastidores que Jordan e Minardi abandonariam a corrida junto com os carros equipados por pneus Michelin, e a Ferrari correria sozinha em Indianápolis.

A ideia não foi para a frente, e mesmo com vários pilotos (em especial David Coulthard) demonstrando vontade de correr, a Michelin recomendou a todas as equipes que usavam seus pneus que, como o regulamento da época previa que a corrida precisava de pelo menos 12 carros para ser realizada, mas a volta de apresentação era considerada, o mais seguro era alinhar como sempre no grid, e na volta de apresentação, retirar os carros para os boxes, fazendo com que apenas os carros de pneus Bridgestone largassem, evitando punições judiciais que piorariam a situação. E assim foi feito.

Todos os vinte carros foram para o grid e fizeram a volta de apresentação, mas os 14 da Michelin se retiraram, e com isso, apenas Michael Schumacher (Ferrari), Rubens Barrichello (Ferrari), Tiago Monteiro (Jordan), Narain Karthikeyan (Jordan), e Christijan Albers (Minardi) e Patrick Friesacher (Minardi) largaram. O público incialmente ficou incrédulo, em silêncio, sem saber o que acontecia. Porém, logo depois, o que se viu foram vaias homéricas dos 80 mil espectadores presentes no Indianápolis Motor Speedway. Durante a corrida, muitos deixaram o autódromo, pediram o dinheiro dos ingressos de volta, e objetos como bandeiras e garrafas d’água foram atirados na pista. Um show de horrores.

Dentro da pista, só houveram ultrapassagens das Ferraris sobre os retardatários, mas a equipe italiana também protagonizou uma polêmica. Ao sair de sua última parada, na volta 51, Schumacher deu de cara com Barrichello, que já havia parado, e os dois dividiram a curva 1. Sobrou para Rubinho, que acabou saindo da pista, passeando pela grama, mas voltou sem problemas. O brasileiro, que já havia reclamado publicamente de uma ultrapassagem de Schumacher sobre ele no GP de Mônaco, ficou ainda mais possesso, e os dois nem ao menos se olharam no pódio (segundo vários especialistas, aquele foi o estopim para Barrichello, que deixou a Ferrari no fim de 2005, mesmo tendo contrato até 2006). Enquanto os Ferraristas nem estouraram a champanhe, Tiago Monteiro, o 3º, vibrou como uma criança, por conseguir o primeiro pódio de um português na Fórmula 1.

Depois da corrida, Paul Stoddart responsabilizou Todt pelo incidente, mas deu a culpa máxima ao presidente da FIA na época, Max Mosley.

Enquanto Michael Schumacher e Rubens Barrichello mal se olhavam, Tiago Monteiro celebrou muito o 3º lugar, primeiro pódio de um português na F1 (Foto: Getty Images)

Estragos

Com o incidente, a Michelin teve sua imagem fortemente arranhada, e ainda no fim daquele ano anunciou que não renovaria seu contrato com a F1, que foi até o fim de 2006, e só neste ano cogita uma volta, desde que sejam atendidas propostas como a “guerra dos pneus” (mais de um fabricante) e o aumento da largura dos compostos. Em 2007, a Bridgestone passou a ser fornecedora única, deixando a categoria em 2011 para a entrada da italiana Pirelli, que permanece até hoje.

Quem também sofreu com os estragos foi a reputação da Fórmula 1 nos Estados Unidos. O povo americano, apesar de gostar muito de automobilismo (duas das categorias mais fortes e populares do mundo, a IndyCar Series e a NASCAR, são dos EUA), nunca teve uma relação muito próxima com a categoria europeia. Depois do episódio de 2005, a F1 correu mais duas vezes em Indianápolis, em 2006 (vitória de Michael Schumacher, da Ferrari) e 2007 (vitória de Lewis Hamilton, da McLaren), e deixou o país em 2008, só voltando em 2012, com o GP no novíssimo e moderno Circuito das Américas, em Austin, no Texas.

Declarações

Vários pilotos, chefes e dirigentes deixaram sua opinião na época. Veja algumas:

Isso é um pecado, uma pena. No entanto, é o único jeito de a gente não se machucar, pois era perigoso fazer a corrida assim. Isso foi decidido antes de irmos para o grid, e depois resolvemos que após a volta de apresentação iríamos para os boxes e a corrida pararia ali” – Felipe Massa, na época da Sauber.

Isso deixará um gosto ruim para os torcedores. Francamente, como piloto, é constrangedor estar envolvido nesta situação. O fato é: adultos não conseguiram entrar em acordo para fazer um show. É um dia muito triste para o automobilismo” – David Coulthard, na época da Red Bull.

É uma grande frustração para toda a equipe, para os pilotos, para a Fórmula 1 em geral, especialmente em frente à torcida dos EUA. No entanto, não poderíamos ter evitado essa situação - estávamos em perigo e sabíamos disso. Ficou claro que os carros com pneus da Michelin não poderia correr hoje”Jarno Trulli, pole-position daquela corrida, na época da Toyota.

Isso não é uma corrida, é uma farsa. Ninguém a levará a sério hoje. A F1 fez algumas coisas loucas recentemente, e esta trará complicações. Mosley se recusou a aceitar qualquer uma das soluções oferecidas, e acho que isso teve motivos políticos. Para mim, não há dúvida de que o problema em Indianápolis foi responsabilidade do presidente da FIA, com o agravante da ausência de apoio de Jean Todt” – Paul Stoddart, chefe da Minardi na época.

Você não pode dizer para as pessoas fazerem algo quando sua companhia de pneus diz que não podem usar aquela borracha. O futuro da Fórmula 1 nos Estados Unidos e da Michelin na categoria não são bons. Sendo honesto, o incidente não foi por culpa das equipes” – Bernie Ecclestone, chefe comercial da F1 até hoje.